Por Mônica C Ribeiro
A sociedade civil brasileira tem desempenhado papel fundamental no sentido de colocar, na agenda pública, a garantia de acesso a direitos. Desde a redemocratização do país, a partir do fim da ditadura militar, a sociedade civil organizada garantiu uma série de direitos em articulação junto à Assembleia Constituinte que gerou a Constituição Federal de 1988.
Desde então, alguns setores da sociedade civil se mantêm articulados pela manutenção e ampliação desses direitos, o que é fundamental para garantir a democracia no país. No atual momento político do Brasil, seu papel tem sido, mais do que nunca, de resistência, no sentido de buscar garantir os direitos duramente conquistados nas décadas anteriores. E seu fortalecimento mostra-se, assim, essencial para isso.
“Estamos vivenciando hoje uma crise da democracia representativa. Isso pode ser percebido na mistura do interesse público com o privado, na ameaça à independência das instituições, no esvaziamento dos espaços de participação social, até mesmo no desrespeito à diversidade e às liberdades na condução do nosso país. Sendo assim, nesse processo de enfraquecimento dos mecanismos de participação e controle social, a importância do fortalecimento da sociedade civil é essencial para que os movimentos, as articulações e os grupos de pessoas tenham voz e visibilidade”, avalia Cristiane Azevedo, do ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza).
Para Graciela Hopstein, coordenadora da RFJS (Rede de Filantropia para a Justiça Social), a sociedade civil é um campo fundamental para a construção de agendas de políticas públicas, como também espaço para a luta por direitos e para o monitoramento, avaliação e acompanhamento dessas políticas públicas.
“É um espaço participativo e de disputa, fundamental para a construção da democracia. De garantia de participação cidadã, de criação de mecanismos que garantam liberdade de expressão e ecoem as vozes de diversos grupos. Espaço de construção coletiva, onde é possível pensar o comum. A sociedade civil foi absolutamente fundamental para o processo de redemocratização do Brasil, porque foi realmente o espaço onde se conquistou a possibilidade do voto direto. É onde se constroem as agendas públicas que estão ligadas às necessidades de melhorias para a população, em diversos aspectos.”
Harley Henriques, coordenador geral do Fundo Positivo, concorda com Graciela, e destaca que o fortalecimento da sociedade civil é fundamental para garantir sua participação nas esferas de construção de políticas públicas. “Quanto mais fortalecida a sociedade civil, ciente de seu papel político enquanto propositora de políticas públicas, fortalecida nas suas redes e na capacidade técnica de operar, mais ela será hábil e capaz de participar dos processos democráticos por meio, por exemplo, de assentos em fóruns de representação mista, de conselhos, em uma relação horizontal com os poderes executivo, legislativo e judiciário, compondo assim o exercício da democracia.”
A importância da filantropia de justiça social no atual cenário brasileiro
Para Graciela, o papel da filantropia de justiça social no atual cenário político e econômico brasileiro é apoiar os grupos que buscam construir agendas de políticas públicas, num quadro absolutamente devastado no contexto do atual governo federal.
“Continuar apoiando esses grupos é continuar apoiando a resistência, porque acreditamos que esse ciclo conservador e de direita permanecerá por algum tempo. Fortalecer esses grupos é absolutamente necessário inclusive para a construção do futuro. A filantropia comunitária e de justiça social tem ocupado um papel muito importante no fortalecimento da resistência, da luta por direitos. Estamos falando de direitos de minorias políticas, mas também de direitos de cidadania, especialmente no contexto atual de fechamento dos espaços de participação pública.”
Para Cristiane, a filantropia de justiça social fortalece movimentos e articulações locais, potencializando o alcance de suas vozes para permitir que seus direitos não sejam ameaçados, e que a democracia seja mantida.
“É preciso que esse papel seja exercido para promover a articulação entre as lideranças locais, as organizações de base e da sociedade civil, para ampliar a visibilidade de suas agendas de forma coletiva. Assim, poderão contribuir, com a força de suas vozes e ações, para a transformação dessa realidade de crise democrática e de retrocessos político, social e ambiental que todos nós estamos enfrentando no Brasil.”
“A filantropia de justiça social é cada vez mais importante e estratégica, principalmente no contexto atual brasileiro, porque fomenta, impulsiona e fortalece iniciativas comunitárias, possibilitando que essas vozes sejam amplificadas e que haja a possibilidade de uma sociedade equânime, que possa ter acesso a direitos para todos, todas e todes. Essa filantropia fortalece a sociedade civil no oferecimento de serviços comunitários, na produção de conhecimento, beneficiando, sem dúvida, os menos favorecidos e os mais vulneráveis nesse país tão desigual e injusto”, complementa Harley.
O papel da Rede de Filantropia para a Justiça Social e das organizações membro nesse contexto
Como espaço que reúne boa parte dos financiadores da filantropia independente no Brasil, a Rede de Filantropia para a Justiça Social, como ator político, tem a missão de influenciar o ecossistema filantrópico para que, cada vez mais, haja recursos para apoiar a sociedade civil, fortalece-la e também o campo dos direitos.
“Embora não seja um fundo ou fundação comunitária, porque não está ligada diretamente às comunidades de base ou aos movimentos, a RFJS tem justamente a missão de criar dinâmicas para reconhecer e fazer incidência nesse campo e para que realmente a sociedade civil ocupe um lugar importante na agenda política do país. De influenciar doadores e a opinião pública para reconhecer a importância de apoiar grupos de base da sociedade civil para a construção da democracia”, define Graciela.
As organizações membro da Rede, por sua vez, atuam com diversos setores da sociedade civil e com agendas diversificadas no campo da filantropia comunitária de de justiça social no sentido de contribuir para a transformação por meio da doação de recursos financeiros a organizações, coletivos, lideranças e grupos de base que atuam no campo da defesa de direitos.
“Apesar de estarmos em um contexto político e ambiental de significativos retrocessos, em grande parte incentivados pelos posicionamentos de líderes governamentais deliberadamente anti-ambientais, anti-indígenas e anti-povos e comunidades tradicionais, o ISPN continua buscando o diálogo em prol do objetivo social maior que é o desenvolvimento sustentável. A nossa forma de contribuir para gerar transformação nesse cenário é por meio da estratégia PPP – ECOS: Promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais, que está pautada na democratização do acesso a recursos financeiros, no incentivo à participação social, com diálogos entre diversos segmentos e redes da sociedade civil, e esferas de governo”, destaca Cristiane.
A estratégia do ISPN busca ainda a produção e a gestão do conhecimento com a valorização dos diálogos entre saberes e práticas locais, fortalecendo a relação entre pesquisadores, academia e comunidades, fomentando a inclusão social e produtiva.
O Fundo Positivo atua há oito anos no campo da filantropia nacional, sendo o único que trabalha prioritariamente no campo da saúde preventiva. “Ele foi fomentado por uma política de governo federal, e tem esse papel de possibilitar o financiamento de projetos comunitários aportando recursos, principalmente, nas regiões onde o Estado não se faz presente, buscando atender toda uma diversidade e pluralidade de temas e públicos beneficiários. Financiamos projetos em todo o território nacional e contribuímos também para o fortalecimento da sociedade civil ofertando espaços de melhoria de capacidade técnica, formações em temas estratégicos na gestão institucional e de projetos e na promoção de articulação de ações em rede”, diz Harley.
Com mais de 200 projetos financiados em todo o país, o Fundo Positivo atua também em inclusão social e acesso de direitos a determinados grupos mais vulneráveis e em situações de exclusão social. Como exemplo, a organização possui um fundo LGBTQIA+ que direciona recursos para o fortalecimento desse movimento no país por meio das redes nacionais e dos movimentos sociais que atuam no campo.
Lideranças territoriais e transformação
Cristiane Azevedo destaca como fundamental o papel das lideranças locais e periféricas para o processo de transformação e mudança social.
Tomando como recorte as lideranças de Povos, Comunidades Tradicionais e Agricultores Familiares (PCTAFs), ela observa que o trabalho de diálogo e de luta realizado por esse segmento ao longo de muitos anos permitiu que alcançassem algumas conquistas. Entretanto, neste período recente da nossa história, os retrocessos, gerados a partir de 2020, exigem ainda maior engajamento e persistência de suas lideranças no processo de garantia de seus direitos, dos seus modos de vida e, consequentemente, da própria democracia.
“O papel dessas lideranças e de suas organizações de base continua sendo de suma importância na articulação de recursos e potencialidades locais, bem como na sua busca em influenciar atores privados e públicos para alcançar o aprimoramento e adequação de políticas públicas relacionadas às suas lutas. Entretanto, essas lideranças enfrentam atualmente o desafio de fazer com que suas vozes sejam ouvidas e que suas reivindicações sejam consideradas.”
Ela destaca ainda que, no momento, muitas dessas lideranças estão trabalhando arduamente para que seus direitos e seus modos de vida sejam garantidos. Portanto, esse papel é de resistência e luta para manter sua visibilidade e trabalhar pela conservação da natureza por meio do uso sustentável da biodiversidade em seus territórios. Luta que gera benefícios coletivos que serão compartilhados com toda a sociedade.
“Para o Fundo Positivo, as lideranças que são ponto focal de relação têm um papel extremamente estratégico para consolidar a efetividade da filantropia no cenário brasileiro. Porque são essas lideranças que conhecem o território em propriedade, as urgências, a pauta e a agenda prioritária. E têm a capacidade de articulação local, seja com a gestão pública, com outros movimentos sociais, outras organizações da sociedade civil. Elas retroalimentam a pauta do Fundo Positivo a partir do momento em que nós lançamos editais que representam as necessidades identificadas nos territórios por essas lideranças”, define Harley.