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A descolonização da filantropia está avançando?

A mentalidade colonialista contaminou as práticas de filantropia no Brasil, mas existem formas transformadoras de superá-la

Por Allyne Andrade e Silva e Graciela Hopstein

Tradicionalmente, a filantropia se estruturou em torno de uma lógica colonialista extrativista. Colonialidade do poder é um termo cunhado por Anibal Quijano para caracterizar o padrão típico de dominação global no sistema capitalista moderno, cuja origem remete ao colonialismo europeu do início do século XVI. Durante todo o processo colonial, a Europa colocou-se como ponto central de civilização, mais avançado no processo de desenvolvimento, não só da política e da economia, mas também da própria humanidade.

Segundo Quijano, isso acontece também com a dominância ‘dos modelos de controle da subjetividade, da cultura e especialmente com a produção do conhecimento’. Quijano identifica como os mais importantes elementos do eurocentrismo: a) uma articulação marcada do dualismo (pré-capitalista/ capitalista, não-europeu/ europeu, primitivo/civilizado, tradicional/moderno etc.) e a evolução linear, unidirecional, de um estado de natureza para a sociedade europeia moderna; b) a racionalização das diferenças culturais entre grupos humanos derivada da noção de raça; e c) a visão temporal-distorcida de todas essas diferenças por enxergar os não europeus e a sua cultura como anacronismos.

A mentalidade colonial na filantropia

Essa visão eurocêntrica e colonizadora se expressa na filantropia hegemônica de diferentes formas. Em primeiro lugar, há uma enorme desconexão entre quem toma as decisões sobre financiamento e quem recebe as doações/subvenções. Normalmente, são pessoas que vivem em países e condições muito distantes daqueles em que estão intervindo que tomam as decisões sobre pautas, orçamentos adequados, melhores soluções e prioridades para movimentos e comunidades locais. De modo geral, esses tomadores de decisão não representam nem refletem as comunidades que pretendem apoiar, em termos de raça, classe ou gênero.

A colonialidade filantrópica também é extrativista na medida em que os líderes comunitários e organizações locais são obrigados a compartilhar suas estratégias, conhecimentos, os perfis detalhados de seus membros e relatórios trimestrais, semestrais e/ou anuais sobre as suas ações. Por outro lado, há pouca transparência sobre os valores doados ou sobre as estratégias e critérios dos doadores. Muitas vezes sequer se sabe quem são os doadores.

Tudo isso é resultado de uma filantropia hegemônica que visa a determinar que pautas locais são relevantes, que movimentos são merecedores de apoio, quais as melhores soluções e como devem ser reportadas. Além disso, há uma produção incessante de dualidades e, consequentemente, de desigualdades: entre nós, os financiadores, e os financiados; entre nós, cidadãos de Estados constitucionais democráticos e aqueles que defendem direitos em países em desenvolvimento ou países com democracias duvidosas; entre nós, que sabemos quais as melhores perguntas a fazer e que reportamos adequadamente, e as pessoas que recebem o financiamento e precisam ser mais bem treinadas.

O caso do Brasil

A filantropia brasileira sentiu o impacto da colonialidade. Isso fica claro em seus conceitos, práticas e formas de atuação em campo. De acordo com o Censo GIFE, um dos principais levantamentos sobre a filantropia brasileira, a filantropia empresarial e familiar tem mobilizado um volume significativo de recursos. En 2020, por exemplo, foram investidos cerca de US$ 1,4 bilhões na área social. No entanto, a pesquisa mostra que a filantropia brasileira atua mais na realização do que na doação de recursos para a sociedade civil. Apenas 16% dos investidores sociais são financiadores que doam recursos a terceiros. A maioria mantém seus próprios programas. Além disso, os dados do GIFE mostram também que as minorias políticas não são a prioridade, uma vez que apenas 5% das organizações filantrópicas afiliadas ao GIFE financiam direta-mente iniciativas voltadas à questão racial; 9% às mulheres; 3% às comunidades LGBTIQA+ e 4% a pessoas com deficiência.

O ponto de partida fundamental para o avanço na promoção do capital descolonizado na filantropia brasileira é que ele seja visto como um movimento de desconstrução permanente e uma forma de atuação na realidade social, sem impor soluções ‘de cima para baixo’, mas, sim, fortalecendo vozes e reconhecendo o poder das comunidades de buscar suas próprias soluções para os problemas enfrentados.

Cada vez mais, a prática de doações baseadas em confiança vem mostrando uma forma de trabalhar estrategicamente no sentido de reconhecer o poder das iniciativas territoriais e das minorias políticas que lutam pelo acesso a direitos. Os fundos temáticos e fundaçõescomunitárias afiliados à Rede de Filantropia para a Justiça Social – que atuam na área da filantropia local independente – vem proporcionando doações cruciais a ONGs, organizações de base, movimentos sociais e defensores do acesso a direitos no Brasil.

Ruptura com o legado do colonialismo

Assim, os membros da rede buscam fazer um tipo diferente de filantropia. A doação para comunidades de base mostra que o foco está em reconhecer os pontos fortes das organizações da sociedade civil, contribuindo assim para a promoção de transformações em vários níveis. O cerne do trabalho reside no fortalecimento das organizações da sociedade civil que atuam no acesso aos direitos de cidadania e no reconhecimento das minorias políticas. Dessa forma, ela rompe com as estruturas e entendimentos legados da colonização.

O processo de descolonização procura desvincular-se das características coloniais, extrativistas e exploradoras do passado. Isso implica uma transformação radical, fundamentada em novas alianças entre territórios e atores sociais, que não deixe espaço para a volta ao estado anterior de conformidade com o poder colonial dominante e simbólico. Uma filantropia verdadeiramente descolonizada não pode aceitar menos que isso.


Allyne Andrade e Silva é vice diretora executiva do Fundo Brasil de Direitos Humanos.

Graciela Hopstein é coordenadora executiva da Rede Comuá.

*Texto originalmente publicado no site da revista digital Alliance em inglês e traduzido para o blog da Rede Comuá: ,https://www.alliancemagazine.org/feature/is-decolonising-philanthropy-making-headway/

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