Foto: Gaelle Marcel – Unsplash
Por: Graciela Hopstein e Mônica C. Ribeiro*
Um dos grandes gargalos e desafios no fortalecimento das organizações da sociedade civil que atuam nas áreas de justiça socioambiental e de direitos humanos no Brasil diz respeito ao financiamento, já que são poucas as instituições filantrópicas internacionais e locais que apoiam esse campo com foco no desenvolvimento institucional de organizações de base, movimentos sociais e lideranças.
De acordo com pesquisa Mapeamento de organizações independentes doadoras para sociedade civil nas áreas de justiça socioambiental e desenvolvimento comunitário no Brasil (desenvolvida pela Rede Comuá em parceria com a pAp, em 2023), a maior parte dos recursos mobilizados pelas organizações da filantropia local e independente são oriundos de fundações internacionais (aproximadamente 70% do total). Entretanto, é possível afirmar que, mesmo que os recursos internacionais sejam a principal fonte de financiamento, ainda existem diversas limitações dadas a complexidade dos processos burocráticos, as dificuldades no acesso às informações e as barreiras linguísticas, entre outras, criando obstáculos para o financiamento direto e flexível para organizações que atuam no campo da justiça socioambiental e direitos humanos no Sul e no Leste Globais.
O relatório Falta de Confiança: A preocupante “escassez” de financiamento direto e flexível para os direitos humanos no Sul e Leste globais, desenvolvido pela Human Rights Funders Network (HRFN – Rede de Financiadores de Direitos Humanos, em tradução livre), indica que apenas 12% dos recursos destinados aos direitos humanos da filantropia, oriundos do Norte Global, chegam para o Sul e Leste Globais.
O material – cujo sumário executivo em português foi traduzido pela Rede Comuá – destaca que a determinação de quem tem acesso e/ou controle sobre o financiamento – incluindo o apoio flexível que dá aos donatários o direito de decidir a melhor forma de usá-lo – traz sérias repercussões para os movimentos de direitos humanos em todo o mundo. Isso gera disparidades regionais significativas no financiamento destinado a grupos no Sul e Leste globais em oposição àqueles no Norte global.
A HRFN e seus parceiros têm registrado diferenças marcantes em volume, porte e tipo de doações provenientes de fundações destinadas aos ativistas e instituições de direitos humanos em diferentes regiões. Organizações sediadas no Norte Global controlam a ampla maioria das doações para direitos humanos e determinam em grande parte os locais, os problemas e as comunidades priorizadas e financiadas nas ações de direitos humanos em todo o mundo.
O relatório mostra que apenas recursos limitados chegam às comunidades à frente das mudanças no Sul e Leste globais, apesar das fortes evidências de que ações por justiça social lideradas pelas próprias comunidades afetadas geram mudanças mais duradouras e marcantes.
As fundações do Norte Global controlam 99% dos financiamentos mundiais destinados aos direitos humanos e repassam 88% desse financiamento a organizações sediadas no próprio Norte Global. Os 12% restantes são destinados para grupos do Sul e Leste Globais. Do total do financiamento para direitos humanos em cada região, a proporção de doações que chegam diretamente ao Norte Global é consideravelmente maior do que no Sul e Leste globais.
O movimento #ShiftThePower – que tem como um dos focos principais incidir nessas agendas – lançou recentemente a campanha #TooSouthernToBeFunded, pelo fim das regras de financiamento discriminatórias contra a sociedade civil do Sul Global. A campanha é endereçada ao Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), apontando para os desequilíbrios sistêmicos na distribuição de recursos para questões relacionadas ao desenvolvimento. Apesar da narrativa de se comprometer a apoiar a liderança e a sociedade civil do Sul Global, parte importante dos recursos permanece não oficialmente vinculada a OSCs dos países membros do CAD, beneficiando desproporcionalmente as do Norte Global.
Assim, as práticas atuais de financiamento contribuem para perpetuar a falta de acesso a recursos no Sul Global, criando impactos negativos visíveis no que diz respeito à redução do espaço cívico, ao enfraquecimento das organizações da sociedade civil que atuam no campo de acesso e reconhecimento de direitos – questionando a sua capacidade e confiança em relação às OSCs do Sul Global – situação que evidentemente tem repercussões políticas no que diz respeito ao enfraquecimento das democracias.
O movimento de troca e construção de redes e organizações da sociedade civil que atuam com filantropia de justiça socioambiental e comunitária, especialmente no Sul Global, tem permitido trazer uma série de dados que demonstram essas dinâmicas e nos permitem atuar em colaboração, incidindo no campo da filantropia mainstream pela mudança, o que só virá pela alteração das relações de poder e pelo endereçamento da falta de confiança.
A questão da confiança é um elemento chave que nos permite entender a escassez de recursos internacionais e locais para a sociedade civil brasileira. Mesmo que seja possível identificar mudanças nas dinâmicas da filantropia local mainstream (corporativa e familiar) no que diz respeito às doações, ainda se observa uma tendência de baixo investimento de recursos destinados a apoiar OSCs – sendo isso ainda mais evidente quando se trata de organizações de base comunitária e movimentos sociais. As ainda tímidas e incipientes práticas de grantmaking por parte das organizações do ISP (associadas ao GIFE, e que são base para as análises do Censo GIFE) podem ser explicadas tanto pela falta de confiança nas organizações da sociedade civil, bem como pela ausência de um marco regulatório favorável às doações.
Os problemas dos ataques à sociedade civil, criando uma reputação negativa para esse setor, têm se delineado desde 2006, a partir da instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) – conhecida como CPI das ONGs – que teve uma segunda edição no ano de 2023. Certamente, as CPIs foram tentativas de boicote à atuação das OSCs, colocando em questão sua trajetória, na medida em que foram associadas a casos de corrupção (lavagem de dinheiro, principalmente).
Ambas CPIs tiveram repercussões muito negativas, instalando na opinião pública brasileira (incentivada pela mídia) a ideia de que elas seriam meras ferramentas para desvio de recursos financeiros, gerando um clima de descrédito do trabalho desempenhado pela sociedade civil e causando danos permanentes de tanto confiança da população como por parte de financiadores.
A partir dessa análise preliminar é possível afirmar que o cenário é adverso para a sociedade civil brasileira, levando em conta a escassez de financiamento, a criminalização das organizações sociais e o encolhimento dos espaços cívicos, tendência que vem se intensificando no país, principalmente nos últimos anos, com a presença e crescimento de grupos de extrema direita.
Entretanto, o vácuo no financiamento para organizações da sociedade civil no país não é algo novo. A partir dos anos 2000, com a retirada da filantropia e da cooperação internacional do Brasil, o setor começou a enfrentar sérios problemas de sustentabilidade financeira, num momento de crescimento expressivo de organizações sociais no contexto da pós-ditadura.
Com a finalidade de atender às demandas de financiamento, os fundos locais independentes que surgiram no início do século – muitos deles criados por ativistas e militantes de diversos movimentos sociais e que hoje integram a Rede Comuá – começam a ocupar um lugar protagonista no apoio à sociedade civil brasileira. Certamente, essas organizações doadoras (grantmakers) impulsionaram um processo de transformação, não apenas da filantropia brasileira, mas também da sociedade civil, por se tornarem uma alternativa efetiva de financiamento e fortalecimento de pequenas e médias organizações e de movimentos que atuam principalmente no campo de acesso e defesa de direitos. A sua capacidade de apoiar causas estratégicas, de entender o cenário, as redes locais e as agendas prioritárias, de dar respostas rápidas, e a sua capilaridade e alcance de atuação, representaram estratégias inovadoras.
A Rede Comuá (integrada por 17 organizações doadoras fundos temáticos, comunitários e fundações comunitárias) e seus membros têm pautado, a partir do trabalho que desenvolvem, a importância de doar com base na confiança, em parceria com grupos, movimentos e lideranças, partindo de uma escuta qualificada, direcionado os recursos doados para aquelas causas e iniciativas consideradas como necessárias para gerar transformações de suas realidades.
Por sua vez, é importante destacar que a Rede Comuá e suas organizações membro, ao mesmo tempo em que atuam como financiadoras adotando essas práticas, fazem incidência junto ao campo filantrópico para que os modos e agendas de doação sejam revistos e que mais recursos sejam doados para a garantia de direitos humanos junto a grupos politicamente minorizados, como comunidades indígenas, quilombolas, mulheres, LGBTQIA+. No momento atual que atravessamos, sendo os grupos politicamente minorizados os que mais sofrem também os efeitos mais extremos das mudanças climáticas, é fundamental que a doação de recursos – sejam financeiros ou de outra natureza – para garantia de direitos e fortalecimento institucional seja entendida como ato político.
As organizações da filantropia independente ocupam um papel visivelmente importante para que os recursos aterrizem onde precisam e devem chegar. Essas organizações apoiam diretamente iniciativas desenvolvidas pelas comunidades locais e possuem um histórico de sucesso nessa ação, considerando que as doações são mais ágeis e flexíveis do que outras formas de financiamento, permitindo uma resposta mais rápida e efetiva aos desafios que as organizações e movimentos sociais enfrentam. Esses fundos contribuem como parceiros no processo de transformação ao mobilizar e doar recursos para que os grupos, lideranças e organizações da sociedade civil possam implementar as soluções que entendem que são necessárias e prioritárias para as suas realidades
Se bem existe um conjunto de financiadores da filantropia internacional (alguns deles com representações no Brasil) que reconhecem a importância da filantropia independente para a justiça social e, portanto, fazem parcerias com esses fundos (independentes e comunitários), é possível observar, em alguns casos, a existência de mecanismos “complexos” de atuação. A instalação de fundos comunitários criados de ‘cima para baixo’, através de investimento de grandes volumes de recursos para movimentos e/ou grupos, muitos deles com pouca expertise e trajetória no campo da filantropia, nas práticas de grantmaking e na capacidade de gestão institucional e financeira, é uma das tendências observadas recentemente.
Em muitas ocasiões, essa forma de investimento, em lugar de resolver os problemas sociais que buscam enfrentar, criam problemas de sustentabilidade política e econômica para esses fundos, situação que também impacta o campo da filantropia independente e comunitária, colocando em xeque a sua capacidade de atuação, instalando consequentemente uma sensação de desconfiança.
A revisão de práticas de doação, orientada por princípios voltados à democratização do acesso a recursos, à instalação de relações de confiança, à simplificação de processos de prestação de contas, e o reconhecimento de que são as organizações e movimentos da sociedade civil os protagonistas dos processos de transformação, se instala como uma agenda prioritária no campo da filantropia local e internacional.
Nesse cenário, a decolonização da filantropia se coloca como prioritária já que implica uma transformação radical nas visões e práticas, fundamentada em novas alianças entre territórios, comunidades e atores sociais. O ponto de partida é que esse processo seja visto como um movimento de desconstrução permanente e uma forma de atuação na realidade social, sem impor soluções ‘de cima para baixo’, mas, fortalecendo vozes e reconhecendo o poder das comunidades de buscar suas próprias soluções para os problemas enfrentados.
Acesse o sumário em português – https://bit.ly/tg-key-findings-PO
Acesse o sumário e o relatório completo em inglês e outras línguas – https://www.hrfn.org/trust-gap/#