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A Filantropia Colaborativa tem origem na prática comunitária africana: precisamos reivindicá-la

Por Samra Ghermay

Quem me conhece sabe que eu adoro um bom provérbio africano. Cresci ouvindo esses ditados como comentários sobre as minhas ações – os julgamentos não tão silenciosos sobre a qualidade das minhas tarefas, as perguntas do tipo “você tem certeza disso” relacionadas às minhas decisões, as lições de vida a serem reveladas por um respeitado ancião, que aguardava a oportunidade de transmiti-las a mim. Os provérbios estão embutidos nas nossas histórias e é como os meus anciãos comunicavam mensagens a mim e às minhas irmãs, e como éramos tacitamente instruídas a fazer certas coisas. Os provérbios eram essencialmente um jogo em código. E nós aceitamos o desafio com alegria e com isso amadurecemos ainda mais.

Na filantropia, todos nós já ouvimos e muito provavelmente já usamos o provérbio africano: “É preciso uma aldeia inteira para se educar uma criança”.

Acho até que já está batido, então prefiro este outro, que costumo usar muito mais: “Se quiser ir rápido, vá sozinho. Se quiser ir longe, vá acompanhado”.

Sim, esta citação já foi atribuída a Cory Booker, Warren Buffet, Hillary Clinton, Al Gore e muitas outras pessoas, que a usaram para potencializar seus discursos, declarações e publicações nas redes sociais. O único aspecto ‘coletivo’ disso é que todos decidiram ‘juntos’ que a homogeneização de provérbios africanos é um bom negócio. Ainda assim, isso não diminui o fato de que os provérbios tiveram origem em culturas africanas para tratar de temáticas como união, ações coletivas, redes de trabalho e cooperação. Nossos provérbios comunicam fatos históricos, percepções, revelações, ideias e aprendizados, e, o mais importante, eles têm comunidade e parceria como pontos centrais.

O provérbio sobre “ir acompanhado” que mencionei reforça um conceito cada vez mais predominante na área de captação de recursos – que a colaboração e o trabalho em conjunto são muito mais sustentáveis que a individualidade.

Dos provérbios à prática

A filantropia colaborativa já está no cerne de muitas sociedades comunitárias indígenas e africanas. Na verdade, foi a colaboração e a mobilização de recursos junto às comunidades da diáspora que sustentaram as lutas pela libertação, que levaram à independência do domínio colonial. Na esteira do pan-africanismo, um movimento baseado na crença de que a unidade é fundamental para o progresso socioeconômico e político, líderes africanos, como o primeiro presidente da Tanzânia, Mwalimu Julius Nyerere, reconheceram que a luta contra a colonização era um fio condutor, uma experiência compartilhada que poderia unir as nações africanas.

Assim nasceram ideologias fundamentadas no espírito de união, construídas a partir de provérbios e postas em prática em prol da soberania futura das nações africanas. Isso permitiu a disseminação de práticas comunitárias africanas como Mbongi (que se traduz como casa sem quartos) para além da região do Congo, Ujamaa (também o quarto princípio do Kwanzaa em torno da economia cooperativa), que serviu de base para as políticas de desenvolvimento da Nyerere na Tanzânia após a sua independência, e Ubuntu da África Austral, onde o termo é usado para transmitir uma crença no vínculo universal da humanidade. Eu argumentaria ainda que a assembleia Shir da Somália, os tribunais Gaçaça de Ruanda e os Judiyais do Sudão do Sul são todos pilares fundamentais de reconciliação e cura comunitária.

Estes são apenas alguns exemplos dentre muitos que retratam a história, a harmonia e o poder das ideologias colaborativas e da ação coletiva nas sociedades africanas.

A colonização da filantropia colaborativa

Ouvi pela primeira vez o termo “filantropia colaborativa” ligado a uma grande fundação no início de 2019, mas este termo (também conhecido como filantropia de impacto) tem ganhado muita força nos últimos anos. Apesar da sua crescente popularidade em nosso léxico, ele não dá o crédito devido às comunidades que a vêm praticando, nem reconhece a história da prática de captação de recursos que promove o cuidado da comunidade como um todo.

Na verdade, ele foi cooptado para caber dentro de um ambiente institucional, e parece incorporar uma motivação diferente, uma motivação que ignora os atores-chave.

Hoje em dia, ele remete ao trabalho de financiadores e doadores ricos junto a organizações sem fins lucrativos em prol de uma causa social. A estrutura da filantropia de impacto não focaliza nos territórios nem leva em conta as práticas comunitárias de mobilização de recursos. Ao contrário, ela reforça a dinâmica de poder dos ricos sobre os mais importantes colaboradores: as pessoas a que elas servem.

Dada a relação do tipo investidor da filantropia de impacto e considerando que o dinheiro vem do setor privado e de indústrias lucrativas, ele pode evocar uma sensação transacional em vez de transformadora. O verdadeiro sentido da filantropia colaborativa deve ser combater os danos do capitalismo e do colonialismo – deve combater a noção de que são os financiadores que criam e cultivam estratégias para a mudança social.

Acredito que nós, como comunidades e líderes comunitários, temos que nos reapropriar do termo e da ideologia. Essa reapropriação ajudará a garantir que as organizações sem fins lucrativos possam receber recursos consideráveis para superar com sucesso e de forma sustentável as barreiras sistêmicas, a fim de transformar e elevar as comunidades de cor.

Reapropriação

Recentemente, escrevi um artigo para o Candid com título “A captação de recursos só será inclusiva quando reconhecermos o legado de doação das comunidades de cor”. Nele, eu observo como a doação baseada na identidade é, há gerações, um meio eficaz de permitir a grupos alinhados em torno de crenças se reunirem e promoverem ativamente mudanças para tratar as causas centrais dos problemas sistêmicos de suas comunidades. No artigo, eu cito os exemplos dos círculos de empréstimos Tanda liderados por membros da comunidade Latinx, de Susus nas comunidades de imigrantes da África Ocidental, e de Ukub da minha própria terra natal, a Eritréia.

Esses tipos de apoio coletivo por afinidade são frequentemente ignorados (nos Estados Unidos) e não têm o mesmo reconhecimento que o apoio de doadores brancos ricos e fundações estabelecidas. Tanda, Susus e Ukub, entre outros, são verdadeiramente colaborativos, pois são autênticos, intencionais e consensuais.

Precisamos continuar a reconhecer o legado da mobilização de recursos comunitária, reafirmando e conferindo representatividade aos membros das nossas comunidades, onde trabalhamos coletivamente em prol de um objetivo e não de uma meta final. Precisamos desafiar e conquistar os “ismos” prejudiciais ao trabalho de transformação que realizamos. Precisamos reconhecer o impacto das práticas tradicionais e da colaboração nas nossas comunidades.

A filantropia é repleta de complexidades que contribuíram para uma longa história de exclusão e paternalismo. É preciso exigir uma colaboração verdadeira, permitindo um processo democrático onde todas as partes envolvidas, incluindo as comunidades, possam ser vistas, ouvidas e celebradas. Essa abordagem permitirá uma transição mais suave para a construção do movimento necessário para promover uma verdadeira mudança social. Precisamos deixar de lado a mentalidade que tem como foco a captação de recursos sem colaboração. Caso contrário, soaremos muito como o autor e principal defensor do colonialismo, Rudyard Kipling, que certa vez afirmou que: “Anda mais rápido aquele que anda sozinho”.

Em outras palavras, precisamos da colaboração para inspirar ações de incidência e reafirmar nosso trabalho para que, juntos, possamos ir longe na criação de mudanças duradouras.


Samra Ghermay traz seu forte compromisso com a justiça social e os direitos humanos para o Wingo NYC e seus clientes, não apenas como uma expressão de sua ideologia, mas como resultado de suas experiências da vida. Ela é uma feminista negra e imigrante orgulhosa nascida na Eritreia, que hoje mora no bairro de Brooklyn. A carreira de Samra baseou-se no reconhecimento, inclusão, acesso e bem-estar de grupos historicamente sub-representados. Samra administrou um treinamento em captação de recursos para beneficiários da Fundação Arcus baseados na África e colaborou com as missões da UNICEF, o Projeto Horn of Africa da UC Berkeley, o Projeto Restless Development, Sadie Nash Leadership e a Iniciativa de Jovens Líderes Africanos do Presidente Barack Obama, para citar apenas alguns. Ela também é membro do Conselho da Aliança Negra para a Imigração Justa (BAJI). Samra tem bacharelado em Estudos Interdisciplinares pela UC Berkeley e mestrado em Assuntos Internacionais com ênfase em Notícias, Mídia e Cultura pela The New School University. Ela morou em Eritreia, Mali e Tanzânia e viajou para inúmeras outras regiões do mundo. Ela está disponível para contato pela rede LinkedIn.

**O texto original, em inglês, pode ser encontrado no blog do Community-Centric Fundraising através deste link.

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