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A pandemia provocou uma redefinição da dinâmica entre financiador e beneficiário?

Solidarity Foundation*

Por tempo demais, a interação entre financiadores e beneficiários ficou reduzida a pouco mais que uma troca transacional. O dinheiro flui para um lado, os resultados fluem para o outro e os cronogramas são traçados com uma rigidez inabalável. Esse modelo obsoleto está sendo cada vez mais questionado. As organizações de base comunitária (OBCs) e as ONGs do Sul estão pressionando por uma mudança de paradigma no sentido de uma abordagem mais holística, que englobe o apoio não monetário e, principalmente, o financiamento flexível e irrestrito. (Alguns exemplos disso são o movimento #ShiftThePower e o Projeto RINGO).  

Quando a pandemia da COVID-19 ocorreu, ela dizimou os sistemas de saúde e as economias, ceifou vidas e comprometeu a renda de milhões de pessoas. Além disso, ela forçou um ajuste de contas há muito esperado na área da filantropia. De repente, financiadores e beneficiários se viram navegando em um cenário implacável em que as hierarquias tradicionais e os protocolos rígidos não eram apenas inadequados – funcionavam como obstáculos. Esse evento cataclísmico forçou uma reavaliação das dinâmicas de poder, gerando discussões sobre o objetivo real e a eficácia das práticas de financiamento.

No turbilhão da crise, as comunidades marginalizadas enfrentaram uma situação catastrófica e as falhas do sistema foram implacavelmente expostas. Nessas circunstâncias, os financiadores teriam que se mexer, e rápido. A partir do nosso estudo, “Recursos para os movimentos sociais: Como transferir o poder? (realizado como uma contribuição ao movimento #ShiftThePower) observamos que, em meio a toda a calamidade do momento, alguns financiadores conseguiram se libertar de seus antigos paradigmas, adotando com louvor a flexibilidade e o apoio direto. Isso foi mais do que apenas uma resposta à crise; foi o início de uma transformação, mostrando como a filantropia poderia – e deveria – atuar.

“Uma das coisas que a filantropia fez muito rapidamente foi se mobilizar durante a crise. Havia um verdadeiro senso de urgência e isso fez com que as pessoas rompessem com as suas hierarquias tradicionais de tomada de decisões e entrassem em ação”, afirmou Vidya Shah, Presidente Executivo da Edelgive Foundation em uma entrevista com colegas da India Development Review.

Flexibilidade e velocidade 

O luxo de atrasos burocráticos ou condições de concessão inflexíveis constituía um obstáculo para a resposta rápida que a situação exigia, e os financiadores entenderam isso. No que representou uma mudança notável, eles começaram a ouvir seus beneficiários, reconhecendo que uma abordagem de cima para baixo não era apenas ultrapassada, mas também perigosa.

O caráter de urgência da pandemia resultou em um espírito de colaboração sem precedentes. Os financiadores e beneficiários começaram a operar na base da confiança mútua e objetivos compartilhados. Essa não foi apenas uma história bonita de união em tempos de crise – foi um desmantelamento da abordagem de cima para baixo que há muito dominava a filantropia.

“Essa não foi apenas uma história bonita de união em tempos de crise – foi um desmantelamento da abordagem de cima para baixo que há muito dominava a filantropia.”

Seguiu-se a isso um apoio multifacetado: desembolsos de recursos mais rápidos, prazos de projetos mais flexíveis e redirecionamento de recursos para a assistência imediata e despesas organizacionais básicas. Foi um reconhecimento coletivo de que a sobrevivência das organizações de impacto social era tão crucial quanto os projetos que elas executavam. Não se tratava apenas de caridade, mas de solidariedade. Tratava-se de sobrevivência. Tratava-se de compreender a interconexão entre as pessoas. Tratava-se de um futuro compartilhado.

Com o mundo em turbulência, os financiadores finalmente reconheceram que expectativas rígidas eram insustentáveis. Eles deram aos beneficiários a liberdade de inovar e se adaptar às circunstâncias, que mudavam rapidamente, provando que a flexibilidade produziria respostas mais eficazes. A disposição de redirecionar os recursos para cobrir as despesas básicas foi um divisor de águas, refletindo uma compreensão mais profunda das interdependências existentes no ecossistema de impacto social.

Os participantes do estudo indicaram ainda que os recursos flexíveis têm se mostrado os mais benéficos, permitindo que as organizações definam e atinjam as suas prioridades de acordo com as suas próprias necessidades e as necessidades das comunidades atendidas.

As Organizações Não Governamentais Internacionais (ONGIs) que participaram do estudo #ShiftThePower reconheceram a urgência da situação e se mostraram ansiosas em apoiar seus beneficiários. Um participante declarou: “Acho que, basicamente, abrimos os nossos recursos. Essencialmente, informamos a eles que poderiam usar os recursos para qualquer coisa que as normas da FCRA permitissem. Essa foi a primeira coisa que fizemos para todos os nossos parceiros beneficiários. Dissemos: ‘usem como acharem melhor, quaisquer que sejam as propostas’”. A FCRA é a Lei de Regulamentação de Contribuições Estrangeiras (Foreign Contributions Regulations Act), uma lei indiana que regulamenta a entrada de recursos de ajuda internacional.

Sarah Cotton Nelson, Diretora de Filantropia da Communities Foundation of Texas, observou que a sua fundação conseguiu liberar doações dentro de duas semanas, em vez do prazo normal de três a seis meses.

A pandemia também obrigou alguns financiadores a pensar de forma diferente. Após a pandemia, novas iniciativas de financiamento, como o GROW Fund, o Rebuild India Fund e a Pay-What-It-Takes Initiative, refletem uma mudança no sentido do financiamento progressivo e irrestrito e à capacitação, marcando um afastamento dos modelos tradicionais e reforçando o apoio sustentado e holístico.

O crowdfunding, um fenômeno relativamente novo na Índia, surgiu como uma tábua de salvação fundamental, uma vez que as vias tradicionais de financiamento se tornaram escassas. Pessoas físicas, grupos e pequenas organizações se uniram para apoiar os mais necessitados, aproveitando as redes pessoais e as redes sociais para captar recursos. O aumento do crowdfunding representou uma revolução popular na captação de recursos, democratizando o fluxo de ajuda de uma forma que a filantropia tradicional nunca havia alcançado. As novas iniciativas foram, de certa forma, uma resposta às falhas existentes nos mecanismos de filantropia existentes. Porém, isso levanta a questão: o ônus da construção da infraestrutura comunitária deve recair inteiramente sobre as comunidades? Podemos responsabilizar as instituições estatais pela construção de uma base sólida no âmbito dos bens e serviços públicos?

“[O apoio geral] rompe as cadeias que prendem as organizações sem fins lucrativos a um financiamento limitado e específico para um projeto, capacitando-as a realizar seu trabalho com clareza e confiança.”

Os entrevistados para o estudo apontaram que os recursos flexíveis têm se mostrado os mais benéficos, permitindo que as organizações definam e alcancem as suas prioridades de acordo com suas próprias necessidades e as necessidades das comunidades atendidas. Uma das OBCs participantes afirmou que “o apoio geral é mais importante que o apoio a projetos específicos”. Ele rompe as cadeias que prendem as organizações sem fins lucrativos a um financiamento limitado e específico para um projeto, capacitando-as a realizar seu trabalho com clareza e a confiança de que as suas necessidades institucionais serão finalmente atendidas.

Os entrevistados para o estudo apontaram ainda que alguns financiadores criaram fundos específicos para apoiar os esforços de recuperação após a pandemia, enquanto outros conseguiram integrar beneficiários que normalmente não seriam obrigados a apoiar.

É interessante observar que a pandemia também fez com que financiadores que antes se esquivavam do trabalho de justiça social se tornassem mais receptivos a financiar essas áreas críticas. Com a crise, passou a ser impossível ignorar as desigualdades sistêmicas que as organizações de justiça social enfrentam. Além disso, o aumento dos fundos coletivos indicou uma disposição entre os financiadores a colaborar mais estreitamente, combinando recursos para produzir maior impacto.

Maya Winkelstein, CEO da Open Road Alliance, sugere que os filantropos considerem a possibilidade de integrar o financiamento emergencial às dotações orçamentárias regulares. A inevitabilidade de crises futuras significa que devemos nos preparar, ressalta ela.

Riscos e desafios 

Em meio a tudo isso, ocorreram mudanças regulatórias, principalmente a alteração das regras da FCRA (2020). Essas mudanças, especialmente a limitação da subvenção, minaram os esforços de colaboração de ONGs maiores com organizações de base. O limite de 20% para cobrir despesas administrativas prejudicou ainda mais a capacidade das ONGs de desenvolver capacidades e sustentar suas operações, ressaltando a natureza muitas vezes punitiva dos ambientes regulatórios sobre as próprias organizações que se esforçam para promover mudanças.

Uma ONGI observou que “antes da pandemia, era fundamental visitar os parceiros beneficiários, ver o trabalho deles e conhecê-los pessoalmente, porque achamos que isso muda a dinâmica… isso parou e dificultou muito a preservação de alguns relacionamentos”. É importante ressaltar que a dinâmica construída entre financiadores e beneficiários através de trocas contínuas, que permitia que esses últimos aproveitassem benefícios como doações ilimitadas, passou a correr risco por conta da ruptura do relacionamento durante a pandemia.

“Isso ressalta o perigo da filantropia influenciada pelo pensamento de grupo, em que a mentalidade de rebanho assume o controle e os financiadores não param para avaliar criticamente as melhores opções para a comunidade no longo prazo. Com tantos recursos em jogo, eles tendem a gravitar para as organizações e causas que lhes são familiares.”

Muitas organizações comunitárias se viram sobrecarregadas durante a pandemia. No auge da pandemia da COVID-19, o mar de disparidades entre o setor com fins lucrativos e o setor de desenvolvimento era evidente. As organizações menores que trabalhavam na linha de frente para alcançar os “não-alcançados” enfrentaram enormes desafios em termos de logística, apoio financeiro e meios organizacionais para tentar atender às necessidades dessas comunidades. Mesmo enquanto se esforçavam para fornecer alimentos, coordenar o atendimento médico e promover a conscientização, as suas próprias vidas e meios de sustento estavam em risco. A falta de apoio para cobrir as despesas administrativas obrigou a tomada de decisões difíceis sobre sustentabilidade e pessoal. Um entrevistado para o estudo afirmou: “Tivemos que dispensar muitas pessoas. Muitos bons funcionários, nossos colegas, foram embora porque não podíamos mantê-los, não podíamos pagar seus salários em dia… tínhamos apenas um projeto em andamento.” O trabalho árduo dos trabalhadores comunitários inseridos no ecossistema das organizações sem fins lucrativos muitas vezes passava despercebido e não era recompensado.

Em muitos casos, esses foram pontos cegos e falhas dos órgãos filantrópicos que se deixaram “levar por narrativas majoritárias” que não priorizam a criação e manutenção de instituições. Isso ressalta o perigo da filantropia influenciada pelo pensamento de grupo, em que a mentalidade de rebanho assume o controle e os financiadores não param para avaliar criticamente as melhores opções para a comunidade no longo prazo. Com tantos recursos em jogo, eles tendem a gravitar para as organizações e causas que lhes são familiares. Favorecendo um ciclo em que os recursos beneficiam desproporcionalmente alguns poucos escolhidos que partilham das ideologias dos doadores.

**Esse texto integra uma série de quatro artigos, de autoria conjunta da equipe da Solidarity Foundation, na Índia, elaborados a partir de conclusões do estudo Recursos para os movimentos sociais: Como transferir o poder? , realizado em 2024.

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