Foto: WINGS / AXP Photography on Unsplash
Por: Jonathas Azevedo
Nos últimos anos, a filantropia no Brasil tem sido alvo de crescente escrutínio, catalisado tanto por movimentos globais quanto nacionais, como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, no Brasil), o movimento #ShiftThePower (#PoderParaAsComunidades, em português), o Mês da Filantropia que Transforma, promovido pela Comuá e parceiros, a Philanthropy Transformation Initiative (Iniciativa pela Transformação da Filantropia, em tradução livre), pela WINGS, entre outros. Essas iniciativas promovidas por diversos atores da sociedade civil, bem como por organizações e redes filantrópicas, refletem uma crescente conscientização sobre a necessidade de abordar não apenas desafios sociais imediatos e a policrise, mas também questões sistêmicas que estão na raiz das desigualdades e da injustiça. Elas também levantam a questão do papel (e compromisso) real da filantropia com a transformação.
No Brasil, esses debates têm desafiado o legado colonial da filantropia ao questionar suas práticas de financiamento e sua falta de confiança na sociedade civil, a perpetuação da riqueza entre a elite branca e seu compromisso real em contribuir para o desenvolvimento do país por meio de uma abordagem baseada em direitos. No entanto, dados do último Censo GIFE 2022-2023 mostraram que ainda estamos longe de uma transformação real: em termos de territórios apoiados, por exemplo, áreas de preservação ambiental (13%), quilombos (10%), terras indígenas (7%) e assentamentos (3%) figuram baixo na agenda prioritária para a filantropia brasileira, destacando a falta de um compromisso político em defender os direitos das comunidades indígenas e tradicionais. Em outras palavras, um apelo pela necessidade de uma reflexão mais profunda e ação na filantropia brasileira permanece urgente se o objetivo é levar a sério a transformação.
A transformação da filantropia na prática
Por outro lado, para a Rede Comuá e seus membros, a transformação da filantropia já é uma realidade. Em 2023, em parceria com a ponteAponte, o Comuá lançou o primeiro Mapeamento de Organizações Independentes Doadoras para a sociedade civil no Brasil. No universo de 31 organizações mapeadas (14 delas membros da Rede no momento da coleta de dados), tornou-se evidente o potencial de atores da filantropia independente e comunitária em garantir o acesso de recursos a atores da sociedade civil frequentemente negligenciados por atores filantrópicos tradicionais. Quando se trata de públicos-alvo, por exemplo, 74% das organizações mapeadas apoiam organizações da sociedade civil, seguidas por movimentos sociais e coletivos (formalizados ou não), com 71%. Quanto aos temas apoiados, os três principais incluem o fortalecimento institucional (74%); cultura (49%) e direitos das mulheres e de gênero (48%).
Outro elemento que se tornou evidente ao longo do mapeamento foi a diversidade de práticas filantrópicas independentes. Portanto, em vez de falar de filantropia, a Comuáprefere usar filantropiaS, no plural, para destacar a pluralidade de práticas filantrópicas que existem no Brasil e que têm apoiado ativamente atores da sociedade civil – os verdadeiros protagonistas de processos de transformação.
Práticas de uma filantropia transformadora
Embora as abordagens possam variar entre organizações da filantropia independente e comunitária, a Comuá identificou um conjunto de sete práticas que tendem a vincular sua maneira de fazer doações para justiça social e facilitar processos de transformação:
- Reconhecimento e valorização dos ativos das organizações apoiadas: conhecimentos, competências, redes, pessoas, vivências
- Reconhecimento da autonomia das organizações apoiadas na concepção e definição dos rumos do projeto e de sua gestão, tanto em relação ao poder de decisão quanto na gestão de recursos
- Desenvolvimento de ações voltadas ao fortalecimento de lideranças locais e comunitárias e do tecido comunitário
- Investimento através de doações (financeira ou não-financeira) no fortalecimento institucional das organizações apoiadas
- Priorização de temas e públicos associados a grupos historicamente minorizados(minorias políticas) e com histórico de violação de direitos (negros, mulheres, LGBTIA+, indígenas e povos tradicionais)
- Adoção de processos e mecanismos que facilitem o acesso amplo a recursos e a prestação de contas por parte de organizações apoiadas
- Promoção da diversidade e da participação de representantes das organizações apoiadas em processos/instâncias de decisão internos
Várias dessas práticas dialogam com os princípios da Philanthropy TransformationInitiative, lançada pela WINGS em 2023. Essencialmente, a filantropia independente e comunitária sempre foi ousada (Princípio 1), experimentando diferentes mecanismos de doação para garantir a democratização do acesso a recursos por atores e atrizes da sociedade civil e grupos historicamente marginalizados que estão na vanguarda da resistência contra a negação de direitos e ataques à democracia (alinhamento de ações com valores, princípio 7). Ao experimentar abordagens comunitárias e participativas, a filantropia comunitária também promove a colaboração e o trabalho com outros (Princípio 4) para fortalecer o tecido social, bem como uma estratégia para abordar a raiz de desafios sociais complexos (Princípio 7) por meio de uma abordagem baseada em ativos que valoriza o conhecimento, habilidades, redes, experiências e, acima de tudo, que confia nas soluções promovidas pelas próprias comunidades (Princípio 8).
Finalmente, a filantropia comunitária sempre foi explícita em desafiar as dinâmicas de poder existentes no setor. Nesse sentido, o Comuá contribuiu para a PhilanthropyTransformation Initiative apresentando o caso de uma organização membro, o Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN), e o projeto Traçando Novos Caminhos para o Bem Viver, uma colaboração com os grupos indígenas Associação Wirazu e Guerreiras da Floresta da terra indígena Caru. Como exemplo do Princípio 3, Compartilhar Poder, o projeto centralizou a tomada de decisão nas mãos dos povos indígenas, desde o desenho até a implementação e monitoramento das atividades apoiadas sob um esquema de microprojetos. Como contribuição para o campo, “o ISPN visa influenciar o ecossistema filantrópico para explorar estratégias alternativas de doação que transfiram poder para as comunidades locais em sua luta por direitos e para desenvolver e implementar estratégias para mobilizar conhecimento e recursos locais”.
O futuro da agenda de transformação
Embora as iniciativas mencionadas por atores da filantropia comunitária e independente demonstrem modelos promissores, o desafio continua sendo garantir recursos adequados, bem como influência real nos espaços de tomada de decisão. A filantropia precisa dar espaço para as filantropiaS, no plural. Se os padrões de financiamento atuais continuarem a ignorar tais iniciativas, assim como outras questões cruciais, como desigualdade racial e de gênero, a filantropia nunca cumprirá o papel de facilitadora da transformação.
A jornada rumo a uma filantropia que transforma envolve questionar as agendas políticas subjacentes e as dinâmicas de poder que moldam as práticas filantrópicas, bem como os fluxos de financiamento para agendas estratégicas e atores da sociedade civil. Somente ao promover o diálogo, a colaboração e a inclusão, bem como confiar e colaborar com atores da sociedade civil, as organizações filantrópicas podem desempenhar um papel estratégico no enfrentamento de desafios sistêmicos e promover a justiça social no Brasil e além.
Jonathas Azevedo é Assessor de Programas da Rede Comuá.
O texto foi originalmente publicado em inglês no blog da WINGS e pode ser acessado através deste link: https://members.wingsweb.org/news/855297