Foto: AdobeStock-Joa Souza
Por: Mayana Nunes*
Esse artigo é produto da minha pesquisa “Axé para quem é de axé”: o papel da filantropia para justiça social, fortalecimento dos povos de terreiro e combate ao racismo religioso, do Programa Saberes, da Rede Comuá, na qual busco sistematizar a experiência do apoio institucional realizado a estes grupos através do Edital “Enfrentando o racismo a partir da base”, do Fundo Brasil de Direitos Humanos, onde tenho desempenhado o trabalho como assessora de projetos.
A pesquisa resultará numa publicação onde relato as histórias dos grupos apoiados, e visibilizo as ações realizadas pelas comunidades a partir dos recursos recebidos neste edital.
Quase um ano depois de encerrado o ciclo do edital, voltei a conversar com os terreiros de matriz africana apoiados ao longo de 2022 e 2023. Entre eles está o Centro Social e Tempo de Umbanda Caboclo Flecheiro, localizado em Olinda, Pernambuco, e liderado por Pai Edson de Omolu.
Ao longo de nossa conversa, Pai Edson trouxe uma importante reflexão sobre como a filantropia brasileira percebe as religiões de matriz africana. Segundo ele, “Ainda há um olhar muito ocidentalizado sobre a vivência dos povos de terreiros. Para nós, não existe essa distinção tão marcada entre sagrado e profano. Essa dicotomia não faz parte das nossas perspectivas.”
Fundado em 2013, o Centro Social e Templo de Umbanda Caboclo Flecheiro simboliza o protagonismo histórico dos povos de matriz africana na reorganização econômica, política e social de parte da população negra brasileira. Corroboro com a leitura de Pai Edson sobre como a contribuição e o protagonismo dos terreiros para o fortalecimento de suas comunidades e na resistência ao racismo religioso não tem sido devidamente reconhecido pelo ecossistema filantrópico brasileiro.
Lúcia Xavier (2018) destaca que, na busca por uma “identidade nacional”, o Estado brasileiro liderou inúmeras tentativas de repressão e violência aos terreiros durante o século XX. Embora a Constituição Federal de 1988 tenha estabelecido a inviolabilidade da liberdade de crença e de consciência, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos, não há mecanismos de reparação aos danos causados pelos ataques, destruição dos símbolos sagrados e criminalização que muitas dessas lideranças têm sofrido.
O Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos aponta que as denúncias de intolerância religiosa cresceram 80% no primeiro semestre de 2024, totalizando 1.227 casos. Nas denúncias em que há informação sobre qual religião foi alvo de intolerância, as de matriz africana representam a maior parte, principalmente o Candomblé e a Umbanda.
Pai Edson de Omolu foi uma dessas vítimas. Em 2019, foi condenado a 15 dias de reclusão por falsas acusações de perturbação do sossego público em razão dos rituais realizados pelo Templo, decisão derrubada em segunda instância, mas que deixou profundas marcas na vida do babalorixá.
Os terreiros têm construído estratégias de proteção, de fortalecimento, de combate ao racismo religioso, e a filantropia tornou-se um dos campos em que buscam apoio para resistir às violências. No entanto, em muitos casos, encontram dificuldades para acessar recursos sob a justificativa de que organizações religiosas não podem ser apoiadas, ou diante das exigências para submeterem suas propostas às fundações.
Essa visão revela que há uma perspectiva colonialista que impera em grande parte das organizações da filantropia brasileira, incapazes de compreender o papel político e social que o complexo cultural e religioso de matriz africana possui junto às suas comunidades.
Desde 2014, o Centro Social e Templo de Umbanda Caboclo Flecheiro atua pela promoção da equidade racial por meio da educação, da cultura e da literatura focada em direitos humanos e no combate ao racismo religioso. Em uma das salas do centro/terreiro funciona uma biblioteca comunitária afrocentrada, que atende crianças e jovens do bairro Águas Cumpridas, em Olinda, e tem o papel de ajudar na formação do pensamento crítico desse público através de oficinas de leitura, jogos e teatro. Além disso, durante o período da pandemia, realizaram a distribuição de cestas básicas para aproximadamente 120 famílias da comunidade, iniciativa que seguem realizando até os dias de hoje.
Da condenação pelo suposto crime de “perturbação ao sossego público” vivida por Pai Edson, e revertida em segunda instância, originou-se uma recomendação do Ministério Público para o amplo respeito às Casas de Matriz Africana e Afrobrasileira em Pernambuco.
Pai Edson também destaca como a ausência de recursos financeiros dificulta que os terreiros consigam a institucionalização legal de seus espaços. Desse modo, o ciclo de exclusão se mantém: em muitos casos, a falta da documentação jurídica (estatuto social e CNPJ) impossibilita que os terreiros consigam recursos do campo da filantropia. Sem recursos, seguem expostos a ataques, ameaças e riscos de criminalização em razão do racismo religioso.
Em “A terra quer, a terra dá”, o quilombola Antônio Bispo dos Santos (2023) nos lembra que, na visão dos colonialistas, os quilombos não têm cultura, pois estes não se comportam da forma mercantilizada, padronizada, colonial que a cultura ocidental exige. Antônio Bispo nos lembra que os quilombos não compartilham desse modelo de cultura. Os quilombos compartilham modos de ver, de sentir, de fazer as coisas, modos de vida.
Quero trazer o olhar de Antônio Bispo para os povos de matriz africana. Os terreiros são espaços de práticas de fé, de espiritualidade, religiosidade, assim como são locais de educação, de cultura, de cuidado e autocuidado, de alimentação, de política e de busca por justiça social.
Se o papel da filantropia é o de potencializar as ações realizadas pelas comunidades que visam a transformação de seus territórios, a filantropia brasileira precisa compreender que os terreiros não existem a partir de uma lógica linear. São espaços múltiplos, de confluência, de compartilhamento. Nesse sentido, é preciso que tanto destinem mais recursos para terreiros de matriz africana, quanto flexibilizem as regras para o acesso, compreendendo-os em sua multiplicidade.
A justiça social, a defesa dos direitos da população negra e o combate ao racismo passam pelo reconhecimento desse protagonismo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
XAVIER, Lúcia. Prefácio. In: HOSHINO, Thiago (et all). Direitos dos povos de terreiro. 1. ed. Salvador: Mente Aberta, 2018. v. 2. ISBN 978-65-86483-16-1. Disponível em: https://www.awure.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Direito-dos-Povos-de-Terreiro_Completo.pdf. Acesso em: 17 out. 2024.
INTOLERÂNCIA religiosa: denúncias crescem mais de 80% no primeiro semestre de 2024, segundo Disque 100. G1, 7 ago. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/08/07/intolerancia-religiosa denuncias-crescem-mais-de-80percent-no-primeiro-semestre-de-2024-segundo-disque-100.ghtml. Acesso em: 17 out. 2024.
SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: UBU Editora/PISEAGRAMA, 2023.
*NOTAS
> “Abre caminhos” é uma planta utilizada nos terreiros de matriz africana para remover obstáculos, superar desafios, encontrar novas jornadas.
> Este artigo faz parte do projeto de pesquisa “Axé para quem é de axé”: o papel da filantropia para justiça social, fortalecimento dos povos de terreiro e combate ao racismo religioso”, de Mayana Nunes, desenvolvida no âmbito do Programa Saberes da Rede Comuá.AUTORA: Mayana Nunes é Doutora em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas e assessora de projetos no Fundo Brasil de Direitos Humanos.