Por: Bathylle Missika*
As fundações apoiam o desenvolvimento de várias formas. O que elas financiam e apoiam é importante. Mas a forma como elas fornecem esse apoio é fundamental para causar impacto. Nos últimos anos, a filantropia vem examinando cada vez mais os seus próprios métodos de doação. A flexibilidade, a agilidade e a tomada de riscos são intrínsecas aos valores da filantropia e vêm se apresentando como uma clara vantagem comparativa. O financiamento flexível, definido como “subsídios ou apoio financeiro concedido sem restrições rígidas ou condições predefinidas quanto a como o dinheiro deve ser gasto”, permite que os beneficiários distribuam recursos de acordo com as suas necessidades em evolução. Os benefícios são claros: um relatório da OCDE revela que os beneficiários que recebem recursos flexíveis se sentiram capacitados a inovar e adaptar suas atividades conforme as necessidades em tempo real (OCDE, 2024).
Além disso, os beneficiários relataram maior estabilidade financeira, permitindo-lhes concentrar-se em objetivos de longo prazo em vez de demandas de projetos de curto prazo (MacLeod, 2021). No entanto, conforme destacado em um relatório recente da OCDE, apenas 5% das doações filantrópicas foram consideradas flexíveis no ano 2000, apesar dos indícios de que o financiamento flexível traz resultados melhores no longo prazo. Ainda assim, o financiamento flexível entre os grandes doadores filantrópicos aumentou consideravelmente nas duas últimas décadas – de cerca de 5% em 2000 para 20% em 2021 (OCDE, 2024). Essa mudança ressalta o crescente reconhecimento do valor que o apoio irrestrito traz para os beneficiários e a sua capacidade de realizar mudanças na linha de frente. No entanto, esse aumento ainda está aquém do seu potencial e continua limitado a algumas poucas organizações. De acordo com uma Pesquisa de Doadores realizada em 2023, apenas 47% dos doadores informaram estar se encaminhando em direção a mais doações plurianuais, e apenas 35% indicaram que a maioria das suas doações era irrestrita e plurianual. Isso mostra que a integração do financiamento flexível continua a ser um desafio (Trust-Based Philanthropy Project, 2023). Por que a maior parte do financiamento filantrópico continua a ser restritiva?
A atual dinâmica de financiamento exacerba o desequilíbrio entre financiadores e beneficiários, alimentando um debate sobre a importância da “filantropia baseada na confiança”. Esse conceito defende a capacitação dos beneficiários, a minimização de relatórios trabalhosos e o fornecimento de financiamento flexível. De fato, mais de 300 candidatos a financiamento pesquisados em 2017 expressaram sentir que as exigências de relatórios muitas vezes refletem uma falta de confiança na sua capacidade de atingir metas, perpetuando desequilíbrios de poder (PEAK Grantmaking, 2017). O financiamento flexível e a filantropia baseada em confiança são frequentemente usados de forma intercambiável, embora sejam claramente distintos. A filantropia baseada na confiança envolve a criação de relacionamentos mais equilibrados entre financiadores e beneficiários, permitindo que as organizações usem os recursos com base na sua experiência e na compreensão do contexto. Porém, a confiança por si só, sem atenção ao monitoramento do progresso, dos resultados e do impacto, é insuficiente. O debate dentro da filantropia deve abordar não apenas a confiança, mas também como o sucesso é definido e alcançado diante do estabelecimento de objetivos globais, como os da Agenda 2030 da ONU (Nações Unidas, 2015).
Fazendo um balanço do financiamento filantrópico flexível
Analisando as modalidades e a “filosofia” das doações filantrópicas, é preciso reconhecer a lacuna entre as ambições e a realidade. Conforme dito anteriormente, o financiamento flexível é pouco frequente, com apenas 1 em cada 6 doações filantrópicas para o desenvolvimento sendo caracterizada como flexível entre 2016 e 2019 (OCDE, 2024). Frequentemente, as organizações filantrópicas exigem que os beneficiários apresentem relatórios detalhados sobre o uso dos recursos, o que indica que a “filantropia baseada na confiança” está longe de ser a norma. Os beneficiários convivem com um desequilíbrio de poder em seu relacionamento com os financiadores, devido às exigências rigorosas associadas aos recursos não flexíveis. Apesar da intenção de muitos financiadores de promover mais igualdade no relacionamento com seus parceiros, a resistência dos conselhos e curadores continua sendo um obstáculo importante. A Pesquisa da Comunidade (Community Survey) de 2022 revelou que apenas 17% dos conselhos afirmaram estar totalmente comprometidos com a filantropia baseada na confiança, enquanto 34% dos entrevistados qualificaram os membros de seus conselhos como “razoavelmente investidos” (Trust-Based Philanthropy Project, 2022). No entanto, longe de retroceder, muitas filantropias aspiram a capacitar seus beneficiários, a se concentrar mais no desenvolvimento promovido por lideranças locais, e reconhecem os benefícios das doações flexíveis.
Então, por que o financiamento flexível ainda é a exceção? Mudar a dinâmica entre doador e beneficiário por meio do financiamento apresenta desafios consideráveis. Muitas fundações estão vinculadas às exigências de seus conselhos, que requerem relatórios detalhados e a supervisão dos recursos desembolsados. Embora muitas instituições filantrópicas confiem em seus parceiros, elas querem participar de todo o ciclo do projeto, inclusive na definição dos KPIs a serem cumpridos pelos beneficiários. Algumas fundações com diversos projetos em diferentes regiões geográficas e equipes de concessão pequenas enfrentam dificuldades para criar confiança e monitorar projetos, o que resulta em uma supervisão mais rigorosa. Um estudo da RAND Corporation constatou que as organizações sem fins lucrativos gastavam 11% de seus orçamentos anuais e 44% do tempo da equipe com funções relacionadas à conformidade, como a preparação de relatórios, rastreio de dados e participação em reuniões (Lara-Cinisomo & Steinberg, 2006). Esse ônus é resultado direto de restrições rígidas de financiamento e contribui para os desequilíbrios de poder entre financiadores e beneficiários. Além disso, o risco à reputação é um grande obstáculo para um financiamento mais flexível. Muitas fundações, inclusive as familiares e corporativas, evitam o financiamento “essencial” ou flexível a fim de manter o controle e reduzir o risco à reputação. Muitas organizações filantrópicas continuam bastante avessas ao risco, apesar da retórica, e querem evitar que os recursos sejam mal utilizados ou desviados, o que leva a controles mais rígidos sobre o financiamento. Por fim, a maioria das fundações do Norte Global, por não ter escritórios locais, enfrenta dificuldades ainda maiores para criar confiança e renunciar ao controle. O uso de intermediários geralmente leva a concessões mais rígidas e restrições adicionais. O debate em torno da filantropia baseada na confiança e do financiamento flexível destaca a necessidade urgente de mudar as relações de poder entre doadores e beneficiários.
No entanto, alcançar a verdadeira igualdade nas parcerias filantrópicas pode não ser realista, visto que a relação não é igualitária. Sempre haverá algum grau de desequilíbrio de poder entre aqueles que têm e disponibilizam financiamento e aqueles que o recebem e cuja sobrevivência organizacional depende desses recursos. Embora as parcerias definitivamente possam ser mais equilibradas, elas nunca estarão em pé de igualdade. Reconhecer esse desequilíbrio e os obstáculos concretos à disponibilização de financiamento flexível é essencial para encontrar maneiras de apoiar os beneficiários e capacitá-los. Então, como colocar isso em prática?
Como avançar
São muitos os argumentos a favor do financiamento flexível: envolver os atores locais e incentivar a autonomia na distribuição de recursos pode aumentar o sucesso do projeto (The Global Fund for Community Foundations, 2013). Para promover uma filantropia mais equitativa e orientada a resultados, um relatório da OCDE sugere que os doadores filantrópicos devem avaliar cuidadosamente se a adoção de financiamento flexível em vez de financiamento de projetos específicos está alinhada aos seus objetivos e apoia efetivamente os seus beneficiários (OCDE, 2024). Isso envolve analisar como os diferentes tipos de financiamento afetam as capacidades operacionais dos beneficiários e ajustar o equilíbrio conforme necessário. Para melhorar a eficiência e o impacto, os filantropos devem simplificar os contratos de concessão e os processos de relatório de forma reduzir a carga administrativa e os custos de conformidade, e ao mesmo tempo garantir a transparência de qualquer doador secundário ou intermediário quanto ao uso dos recursos. Essa abordagem ajudará a manter a confiança, a responsabilidade e a eficácia dos esforços filantrópicos.
Em última análise, além da confiança, a filantropia deve destacar um foco compartilhado no impacto entre doadores e beneficiários. A adoção do financiamento flexível é um passo crucial nessa direção, permitindo que os atores locais priorizem o impacto sobre a conformidade rígida. Essa mudança depende de uma transformação no comportamento dos financiadores e um maior envolvimento de todas as partes interessadas, incluindo conselhos, comunidades locais e beneficiários. Ao envolver todas as partes na tomada de decisões, a filantropia pode apoiar seus parceiros na linha de frente de forma mais eficaz, fortalecendo o compromisso e a responsabilidade e, ao mesmo tempo, buscando resultados significativos.
Fontes:
- Lara-Cinisomo, Sandraluz e Paul S. Steinberg (2006), Cumprindo as exigências de conformidade do financiador: Um estudo de caso sobre os desafios, o tempo gasto e os dólares investidos. Santa Monica, CA: RAND Corporation.
- MacLeod, R. (2021), Subsídios básicos: o caminho longo e sinuoso para o financiamento transformador
- OCDE (2024), Sem obrigações? Entendendo o financiamento flexível na filantropia, OCDE Publishing, Paris
- The Global Fund Community Foundation (2013). Os argumentos a favor da filantropia comunitária: Como a prática desenvolve capacidade, confiança e ativos locais – e por que isso é importante.
- Trust-Based Philanthropy Project (2022), Percepções a partir da Pesquisa da Comunidade de 2022.
- Trust-Based Philanthropy Project (2023), RELATÓRIO DE PESQUISA DE DOADORES: Análise das respostas de 396 doadores em vários pontos da jornada da filantropia baseada em confiança.
- Nações Unidas (2015). Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
- Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) (2021). Relatório sobre o uso de financiamento flexível em 2020.
- Este artigo faz parte de uma série que marca o primeiro aniversário da edição internacional do livro “A Filantropia de Volta à Estaca Zero”. Com curadoria convidada do autor do livro, Rien van Gendt, a série compartilha percepções sobre os tópicos e tendências predominantes no setor de filantropia:
- “A Filantropia de Volta à Estaca Zero”: Um ano depois – Rien van Gendt, Van Gendt Philanthropy Services
- A pluralidade na filantropia: equilibrando o impacto de longo prazo e as necessidades urgentes – Carol Mack, Association of Charitable Foundations
- Além da confiança: como a filantropia deve avançar em direção a um financiamento mais flexível para maximizar o impacto – Bathylle Missika, OCDE
- A jornada de Wilde Ganzen com a concessão participativa de subsídios – Reham Basheer, Wilde Ganzen
- Para além do financiamento: Explorando práticas participativas na gestão do Active Citizens Fund pela Fundação Gulbenkian – Pedro Calado, Fundação Calouste Gulbenkian
- Reflexões sobre a filantropia mundial para maior impacto: Uma abordagem holística baseada em valores e fundamentada na experiência – Runa Khan, Friendship
*Bathylle Missika é chefe da Divisão de Redes, Parcerias e Gênero da OCDE.
Publicado originalmente em Philea (Philanthropy Europe Association)