Seja muito bem-vinda/e/o à Rede Comuá!

Cooperação sul-sul fortalece reflexões e trocas entre realidades Brasil e Moçambique

Por Lucas Lopes

No dia 22 de julho aconteceu o primeiro encontro entre a Fundação Micaia, de Moçambique, e a Rede de Filantropia para a Justiça Social à fim de gerar aproximações das organizações e dos países em suas experiências com o que entendemos como “filantropia comunitária[1].

Em 2021 ambas as organizações deram início ao Programa Doar para Transformar em seus respectivos países. Além de Moçambique e Brasil, o programa está sendo realizado em Burkina Faso, Gana, Etiópia, Uganda, Quênia e Palestina.

Desde 2016, em um encontro internacional em Joanesburgo, África do Sul, a Rede vem refletindo e produzindo conhecimento sobre o conceito de “filantropia comunitária” para além dos moldes tradicionais adotados por órgãos internacionais. Através de provocações e pensamentos sobre o assunto, foram realizadas pesquisas e trocas de saberes com atores sociais, identificando que práticas de “filantropia comunitária” já existiam no Brasil há muitos anos, porém fora da ideia pré-concebidas de fundação comunitária.

Nesse encontro de aproximação, foram compartilhadas variadas práticas que existem dentro da ideia de “filantropia comunitária” no Brasil, enquanto comunidades que se organizam e mobilizam recursos para alavancar seus próprios processos de transformação e de desenvolvimento. E não apenas recursos financeiros, mas também redes, conexões e ativos locais. São iniciativas muitas vezes dinâmicas, de auto-organização, autônomas, feitas por grupos sociais organizados, algumas delas com anos de história e prática, como as comunidades e irmandades negras e quilombolas. Na realidade brasileira, filantropia comunitária não é só territorial, ela acontece também com o envolvimento e consideração de minorias políticas, como LGBTI+, mulheres, negros, indígenas, agricultores familiares. Essas organizações existem independentemente das fundações e dos recursos que possam chegar a elas através da filantropia internacional.

Entendeu-se ali que a diversidade de estruturas dentro da filantropia comunitária praticada por comunidades é vital para conferir uma materialidade ao conceito. A ideia é não impor um conceito teórico e entender sua prática, mas sim criar o conceito a partir da prática que já existe. A diversidade está no cerne desse processo e, ao ignorar isso, esbarra-se no problema de falta de identificação das pessoas e comunidades com a proposta, que falha em explicar suas realidades particulares.

Em cada lugar do mundo esse modelo absorve e incorpora características das dinâmicas sociopolíticas variadas. Filantropia comunitária, portanto, é uma visão, uma forma de fazer filantropia, de reconhecimento do campo filantrópico com ações que já existem, recursos que permitem a instituições da sociedade civil com total autonomia para que a comunidade faça seu projeto sem maiores crivos burocráticos.

Colaborando com a discussão, a Fundação Micaia trouxe importantes reflexões sobre a realidade de Moçambique que, embora compartilhe elementos com a brasileira, possui suas próprias particularidades que devem ser consideradas.

Existe no país uma cultura de solidariedade, mas sem, necessariamente, a designação de “filantropia”. Exemplos como “ajuda mútua” e “safety net” locais, permitem que grupos sociais se organizem e sobrevivam, de forma resiliente, frentes aos turbilhões sociopolíticos e financeiros. O desafio para Moçambique, portanto, se dá a partir do mapeamento da diversidade existente, de forma a pensar no conceito que faça sentido pra o país e suas realidades, e que surja a partir da realidade material.

Existe, assim como no contexto brasileiro, uma falta de apropriação da palavra e conceito de “filantropia” pelas organizações da sociedade civil, muito pela falta de confiança existente no termo. A confiança é um passo vital para a construção de qualquer cultura de doação possível, seja essa confiança nas próprias organizações ou nas agendas defendidas.

Foi apresentada na conversa a hipótese de que devido a uma longa história de políticas de assistencialismo e reestruturação nacional centralizada somente na figura do Estado, houve o desenvolvimento de um sentimento de dependência por parte de organizações da sociedade civil e instituições de doações vindas de um elemento externo. Um reflexo desse processo seriam os desafios para o desenvolvimento de uma consciência de autonomia individual por parte das organizações sociais moçambicanas, dados os vínculos estabelecidos com governos ou com investimentos internacionais.

Parte do trabalho da Micaia é mapear o que existe de “filantropia comunitária” no país e estimular uma cultura de proatividade e confiança nos atores sociais de que podem conseguir gerar rendas para suas atividades de forma local e comunitária, envolvendo variados recursos já existentes. Dessa forma Micaia busca fortalecer e mobilizar fundos locais através do desenvolvimento comunitário sejam em locais ou por agendas específicas.

Com essa análise inicial do contexto de ambos os países, algumas questões estratégicas também foram compartilhadas, tais como a forma de apresentar o conceito de filantropia comunitária e os desafios e oportunidades para o desenvolvimento de uma cultura de doação dentro dos países, refletindo sobre como mobilizar e reconhecer os recursos existentes.

Por fim, foi abordado como a filantropia comunitária apresenta-se como uma importante ferramenta para a sustentabilidade financeira das organizações. Em especial dentro do contexto da sociedade civil, tal grau de estruturação financeira permite o fortalecimento de suas ações, prosseguimento de seus trabalhos e uma valiosa liberdade de atuação, em buscar alcançar seus próprios objetivos e traçar suas próprias agendas, livre de influências diretas ou indiretas de financiadores externos.

As trocas entre as realidades de Brasil e Moçambique são fundamentais na busca pela criação de um conceito “tropicalizado” de filantropia comunitária, um que reflita as reais necessidades e que faça sentido na lógica dos países, fugindo da colonização ao aplicar meramente um conceito estadunidense sem quaisquer observações.


Micaia e a Rede estão nessa reflexão juntas, através de trocas constantes e manejo de recursos comuns, de forma a fortalecer conjuntamente uma ideia e prática de filantropia comunitária que faça sentido e seja abraçada nas realidades de seus países.

Para saber mais sobre a Fundação Micaia e seu trabalho em Moçambique, acesse o site: https://micaia.org

Para saber mais dos esforços da Rede de Filantropia para Justiça Social no estudo e divulgação da filantropia comunitária acesse a publicação “Expandido e fortalecendo a filantropia comunitária no Brasil”.

[1] Fundação comunitária é um modelo estadunidense que envolve a criação de uma fundação territorial que administre um conjunto de fundos filantrópicos de diferentes origens, familiares ou individuais. Porém dentro do contexto brasileiro isso não é facilmente implementado, muito por questões ligadas à falta de recursos ou mesmo de confiança nessas fundações.

Lucas Lopes é biólogo, mestre e doutorando em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFRJ – UFF – UFRJ – Fiocruz). Colabora eventualmente com as atividades da Rede de Filantropia para a Justiça Social.

CONTINUE LENDO

Declaração sobre a visão da filantropia para a Cúpula do Futuro e além das Nações Unidas
Declaração sobre a visão da...
27 de setembro de 2024
Tributação e filantropia: caminhos para o fortalecimento da sociedade civil no Brasil
Tributação e filantropia: c...
27 de setembro de 2024
Minha jornada na Rede Comuá: conquistas, desafios e agradecimentos
My journey with the Comuá N...
27 de setembro de 2024
Minha jornada na Rede Comuá: conquistas, desafios e agradecimentos
Minha jornada na Rede Comuá...
27 de setembro de 2024
Carregando mais matérias....Aguarde!