Por Graciela Hopstein
Estamos a apenas alguns dias do segundo turno das eleições brasileiras (marcado para 30 de outubro), que elegerão um novo presidente para os próximos quatro anos. Na opinião de vários analistas, é possível que este seja o momento mais desafiador dos últimos tempos, ou até mesmo da história do Brasil. É importante salientar que o voto no Brasil é obrigatório, então os brasileiros irão às urnas para escolher entre a reeleição de um candidato de extrema direita, Jair Bolsonaro, e um ex-presidente, candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, que governou o país por dois mandatos consecutivos, entre 2003 e 2010.
A campanha eleitoral de outubro (segundo turno) foi marcada por grandes investimentos pelo governo em benefícios sociais, através de programas de alocações financeiras (contrariando as leis vigentes e estourando os limites do orçamento público), atos de violência, ameaças, assédio eleitoral a funcionários de empresas por parte de alguns seguidores de Bolsonaro. O Brasil ainda é um dos maiores criadores de desinformação e notícias falsas (“fake news”) do mundo. Os dados impressionam: houve um aumento de 1.671 por cento do volume de reclamações de desinformação enviadas a plataformas digitais em comparação com o ano de 2020; os casos de violência política pelas redes sociais também dispararam, aumentando em mais de 400 vezes em comparação com o ano de 2018. Tudo indica que a desinformação se tornou uma epidemia e o principal meio de gestão política utilizado pela extrema direita no Brasil.
Além dos balanços dos resultados dos governos de Lula e Bolsonaro e das propostas dos dois candidatos, no cenário atual, o que está em jogo no Brasil é a escolha entre a defesa da democracia (no sentido amplo) e um regime extremamente conservador, fundamentado na ‘família tradicional e nos bons costumes’, no armamento da população civil, na propagação do ódio e extermínio de minorias políticas, e na destruição sistemática do meio ambiente através da exploração massiva e ilegal de recursos naturais.
A luta pela democracia no Brasil
Desde 2019, o Brasil vem enfrentando grandes desafios atrelados a um cenário político cada vez mais adverso e regressivo, especificamente em termos do reconhecimento de direitos conquistados em décadas passadas. O fechamento de espaços cívicos e participativos, as ameaças permanentes à sociedade civil e à democracia, e a desinformação (através da divulgação sistemática de fake news) são algumas das ações políticas levadas a cabo pelo governo em curso. Isso sem falar na gestão dramática da pandemia durante o governo Bolsonaro, que deixou um saldo de quase 700 mil mortes. O cenário marcado pela necropolítica, pelo negacionismo, o questionamento da ciência e pautas relacionadas ao campo dos direitos, evidentemente colocou em risco e comprometeu as instituições conquistadas e fortalecidas desde o processo de redemocratização (1988).
A onda conservadora que vivemos no Brasil e no mundo certamente é uma reação do poder diante do avanço da justiça socioambiental, racial, de gênero e etnia, das pautas LGBTIQ+AP, que evidentemente fortaleceram e diversificaram o campo de acesso e reconhecimento de direitos, e devem ser entendidos como conquistas das lutas dos movimentos. Segundo Foucault, se há relação de poder, há a possibilidade de resistência. Para o autor, a resistência vem antes do poder que se instala a partir dos processos de captação da potência dos movimentos e da transformação.
Ao mesmo tempo, é importante reforçar que a democracia não se limita ao ato de votar, mas está ligada principalmente ao reconhecimento dos direitos – ‘ter direito aos direitos’ – de livre expressão, associação e vida digna (buen vivir). Fortalecer a democracia implica ao mesmo tempo combater o racismo, a homofobia, o machismo, a misoginia, entre tantas outras formas de discriminação.
Espaço para a influência da filantropia
É no campo dos direitos que filantropia e democracia se conectam: do apoio com recursos financeiros e não financeiros a grupos, organizações e movimentos da sociedade civil para construção de pautas no campo de defesa dos direitos humanos, da justiça socioambiental e do desenvolvimento comunitário. Apoiar iniciativas de base comunitária é uma estratégia fundamental para fortalecer os atores na luta pelo reconhecimento de direitos e, portanto, em prol do fortalecimento da democracia.
No cenário político atual, torna-se urgente atuar para transformar o campo da filantropia, democratizando o acesso aos recursos, capilarizando seu sistema de distribuição (outro ponto em que filantropia e democracia se relacionam), conectando-a com as demandas sociais e mantendo diálogo permanente com a sociedade civil. Para isso, é preciso instituir um processo de desconstrução, pensando formas para superar e abandonar os pensamentos coloniais – baseados no eurocentrismo branco, masculino e heteronormativo – e binários – centrados em opostos socialmente construídos – questionando as relações de poder, a imposição de pautas e ações, e evitando reproduzir relações de opressão e subordinação. Também é essencial introduzir mudanças nas organizações filantrópicas com vistas à inclusão gradual de profissionais pertencentes a grupos políticos diversos e minoritários.
Precisamos pensar politicamente o campo da filantropia porque, de fato, a vida e a nossa própria existência são políticas. Incluir essa dimensão é fundamental para entender a sua conexão com o mundo real e até mesmo para refletir sobre o papel desempenhado pela filantropia nos processos de transformação no campo social (no sentido amplo). Porque transformar implica quebrar pactos preexistentes baseados no patrimonialismo, racismo, machismo etc. (ShiftthePower).
Nos últimos anos, a filantropia brasileira passou por mudanças consideráveis. O Brasil conta com um ecossistema filantrópico bem desenvolvido (mesmo quando comparado com países da região da AL), com grande capacidade de mobilização de recursos. No contexto da pandemia, ficou clara a capacidade de mobilização de recursos da filantropia empresarial e familiar para enfrentar a crise e a situação emergencial. No entanto, esses recursos não chegam à sociedade civil de forma significativa, haja visto que a maioria das organizações filantrópicas locais não são predominantemente doadoras. E embora essas tendências estejam mudando aos poucos, ainda vemos que os principais doadores desse setor são, mais do que fundos independentes, organizações filantrópicas internacionais.
No cenário atual, a filantropia de justiça social e comunitária ocupa uma posição estratégica especificamente na defesa de direitos, no reconhecimento das diferenças, diversidades e interseções, operando por meio de redes rizomáticas, reconhecendo a força das conexões em processos de mudança contínuos. É uma filantropia baseada na confiança, que reconhece a sociedade civil e as comunidades como peças fundamentais para a transformação e o fortalecimento da democracia.
Certamente, as organizações que atuam nesse campo, especificamente os fundos independentes (temáticos e comunitários) integrantes da Rede de Filantropia para a Justiça Social – atual Rede Comuá – foram e continuam sendo estratégicos porque doam recursos para a sociedade de forma permanente, reconhecendo o seu protagonismo local nas lutas pelo acesso e pela defesa dos direitos humanos e da justiça social. De fato, pode-se dizer que, no atual cenário político, são essas organizações filantrópicas que efetivamente contribuem para apoiar as lutas, a resistência e o fortalecimento da democracia no Brasil.
Graciela Hopstein é Diretora Executiva da Rede Comuá.
*Texto originalmente publicado no site da revista digital Alliance em inglês e traduzido para o blog da Rede Comuá: https://www.alliancemagazine.org/blog/elections-in-brazil-what-is-the-relationship-between-philanthropy-and-democracy/
Foto de Capa: Guilherme Santos/Portal Sul21 / reprodução