Por Luize Sampaio
A vacina é a única forma de combater a pandemia do novo coronavírus mas, a falta de um trabalho unificado entre os níveis de governos resultou em uma lentidão no processo de vacinação. Hoje vivemos uma segunda onda da doença com uma alta diária na falta de leitos na UTI de todo o Rio de Janeiro. Na região metropolitana, que concentra 70% da população do estado, grupos prioritários sofrem com a falta de vacinas e com as longas filas que se iniciam ainda na madrugada. Atualmente, a metrópole fluminense vacinou apenas 5,3% da sua população. Até o último sábado do mês (27/03), alguns municípios da região ainda não tinham conseguido vacinar nem 1% dos seus moradores, como é o caso de São Gonçalo, Seropédica e Cachoeiras de Macacu.
A situação em São Gonçalo chama atenção. O segundo município mais populoso do estado, e que por isso é também o que mais recebe doses depois da cidade do Rio, vacinou apenas 9.261 dos seus mais de 999 mil moradores até a data de consulta do mapa (27/03). Dados da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde (SVS/MS) mostram que a cidade já recebeu mais de 170 mil doses, mas a aplicação é a pior de toda a metrópole. Para a nutricionista sanitarista, Amanda Oliveira, que participou na elaboração da agenda local de São Gonçalo, a prefeitura está errando na comunicação.
“O início do processo de vacinação foi muito prejudicado pela forma que a prefeitura anunciava os grupos prioritários. Muita gente foi para aquelas filas quilométricas achando que tinha direito, mas não se encaixava nos critérios. Essa falta de comunicação também fez com que o município ficasse sem doses por um período. Outro ponto é que até hoje não foi divulgado o plano de vacinação do município, no site da prefeitura os dados anunciados também não batem com a realidade. Além de todos esses entraves, ainda temos que lidar com um secretário de saúde, que é médico, afirmando em audiência pública que não pretende se vacinar”, contou Amanda.
A dose política da vacina
Nas últimas semanas os embates entre os prefeitos, governo estadual e federal têm se intensificado. Uma resposta do governador em exercício, Cláudio Castro, foi o anúncio de um calendário unificado para todos os municípios. Ele explicou que a nova mudança aconteceu a pedido dos próprios prefeitos como uma forma de organizar a aplicação das vacinas e diminuir o trânsito de pessoas buscando doses em municípios vizinhos. A vacinação contra covid é uma das únicas campanhas de imunização do país que nasce sem um planejamento de datas unificadas para todos os estados e municípios.
Para a médica e professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ, Lígia Bahia, a situação atual de vacinação do Brasil não é um caso isolado. Ela aponta que muitos países têm sofrido com a escassez de vacinas, o que explicaria esses números baixos de vacinação aqui no Rio. Mas, ainda segundo ela, um agravante que se torna um diferencial aqui é a má gestão. Se no Brasil não há hoje meta para vacinação, no Rio esse tipo de política é reforçada pelo governo estadual.
“Temos um dos piores governos do país, que faz um alinhamento automático às ideias do presidente em reforçar tudo que é anti-ciência. A nossa Secretaria de Estado de Saúde é muito fraca e se mostrou incapaz de coordenar o momento que vivemos. Ao invés de apoiar o trabalho que alguns municípios estão fazendo, o governo estadual quer brincar de quem é dono da bola em um momento que tem gente que não tem nem o pão para comer. É lamentável essa hiper politização da vacina”, afirmou a especialista.
No último domingo (28/03), o próprio governador causou uma aglomeração ilegal em comemoração ao seu aniversário.
As contradições nos dados de distribuição das vacinas
Segundo o Ministério da Saúde, as doses são distribuídas de forma proporcional e igualitária ao contingente populacional dos estados. Nesta conta, o Rio de Janeiro é o terceiro estado brasileiro que mais recebe as vacinas. Os dados mostram que já foram encaminhados 3 milhões de imunizantes para o Rio, que recentemente completou o marco de 1 milhão de doses aplicadas. Para o vice-diretor da Faculdade de Enfermagem da UERJ, Ricardo Mattos, o Rio deveria ter vacinado ao menos o triplo desse número. Mattos trabalha diariamente na linha de frente da vacinação e contou que esse processo de escoamento das doses, que passa pelas mãos do governo federal, estadual e municipal, não é um procedimento nada simples. “Essa entrega não é algo tão ágil quanto a gente imagina, mesmo com o apoio de helicópteros nessa distribuição. Nós já tivemos um episódio de falta de vacina no meio do dia aqui na UERJ”, relatou o vice-diretor.
Ele afirma também que de nada adianta a cidade do Rio pensar em uma programação de imunização descolada da Baixada Fluminense, pois em uma metrópole tudo se mistura. Para ele, a pandemia alertou sobre a importância da unificação do Sistema de Saúde.
“Não dá pra pensar em combater uma doença de transmissão aérea sem um programa conjunto e único. Uma das consequências dessa falta de programação é a ausência de um cronograma de entrega das vacinas, que gera uma ansiedade absurda nos profissionais de saúde da linha de frente. Desde primeiro de fevereiro não tem um dia sequer que a gente não fique até próximo da madrugada na expectativa do dia seguinte, não sabemos se teremos doses suficientes. Sem informação, a população fica perdida e com razão busca a vacina em outras cidades. Só aqui na UERJ já vacinamos pessoas de praticamente todos os 92 municípios do estado”, informou Mattos.
Enquanto o Ministério da Saúde mostra que mais de 12 mil doses de vacina foram distribuídas em Seropédica, dados do Governo do RJ apontam que apenas 180 vacinas foram aplicadas na cidade. Esse cenário se repete em outras localidades. Em tese, Duque de Caxias já recebeu 116 mil doses, mas possui apenas 24 mil aplicadas, contando aqui tanto a primeira quanto a segunda dose.
Os dados sobre cor também são um problema, pois 40% dos registros de vacinados na região metropolitana não trazem essa informação. Para Ricardo Mattos, o registro de cor no Brasil sempre foi subnotificado. “Parece que esse dado não é interpretável como uma variável de grande importância, mas sabemos que a população negra tem sido menos vacinada. Só olhar nas filas de drive thru, a maioria das pessoas ali são brancas. Falta para a população negra base de dados, políticas públicas e acesso aos equipamentos de saúde”, explicou Mattos.
Quando questionada sobre a falta da informação de raça, a Superintendência de Vigilância Epidemiológica e Ambiental do Estado do Rio de Janeiro informou que seguiu as diretrizes do Plano Nacional de Operacionalização. Esse informe do Ministério da Saúde elenca 10 informações básicas para o formulário de registro da pessoa que vai ser vacinada mas, a raça/cor não está entre as informações mínimas priorizadas pelo governo federal.
Um outro problema são as constantes cenas de aglomeração que se repetem por toda a região Metropolitana. Em Belford Roxo, a aplicação da vacina foi suspensa por duas semanas depois de relatos de tumulto nas filas dos postos da cidade. Só na noite de segunda-feira (29/02), a prefeitura anunciou a volta da vacinação após pressão da população nas redes sociais. Mas, para uma moradora da cidade que prefere não se identificar, ainda falta o prefeito Waguinho olhar com seriedade para a pandemia.
“Os problemas começam com a falta de fiscalização, tem acontecido muita aglomeração, o prefeito está ignorando completamente a crise da covid. Recentemente, mesmo com a suspensão das vacinas, a própria prefeitura tem anunciado a volta de atividades presenciais em grupo, como a prática de esportes na vila olímpica da cidade. Aqui, a gente não tem controle da vacinação e falta transparência nos dados. Não sabemos quantas pessoas foram vacinadas diariamente nem que público é esse. Conheço muitos trabalhadores da área da saúde que não conseguiram se vacinar, por exemplo”, contou a moradora.