Reflexões sobre os processos de M&A envolvendo o engajamento de membros na Rede Comuá
Por: Yasmim Morais
“Há uma incompatibilidade na medição entre o que as pessoas que trabalham no nível local consideram importante e o que os financiadores querem ouvir. Muitas vezes, esse desafio é refletido em termos de modelos lógicos lineares, que exigem uma simplificação excessiva e muitas vezes limitam uma abordagem mais holística ou colaborativa” (Dana Doan e Barry Knight, 2020).
Processos de monitoramento e avaliação são parte do cotidiano de muitos profissionais de Organizações da Sociedade Civil que, assim como eu, se preocupam com a sustentabilidade financeira de suas iniciativas e com os resultados que observamos em nossas comunidades a partir do nosso trabalho. Intencionalmente, definimos a mudança que queremos ver e trabalhamos para implementar projetos e programas que contribuam para ela. Acontece que toda mudança social é complexa, não-linear, leva tempo e envolve fatores diversos (vários deles, inclusive, fora do nosso controle). Por algum tempo, pensei que dar conta dessa complexidade significava isolar alguns fatores e apenas considerar aquilo que encaixa na lógica linear dos métodos de M&A tradicionais: as atividades que implementamos levam a resultados imediatos, que, depois de um tempo, nos levariam a objetivos e, no longo prazo, teria um impacto positivo junto às comunidades onde o projeto foi implementado. Com profissionais do setor, apenas teríamos que aprender a construir essa lógica e comunicá-la a financiadores. Nesta comunicação, quanto mais números surpreendentes, mais recursos captaríamos! Mas será que essa forma de medir representa, de fato, a mudança que queremos ver? Será que os indicadores lineares que importamos das demandas de financiadores dão espaço para a complexidade dos sistemas onde estamos inseridos?
Na medida em que gerenciei e participei de projetos e programas diversos, nacionais e internacionais, tanto na base quanto em organizações de infraestrutura do setor, como é a Rede Comuá, percebi que medir impacto de forma linear limita nossa compreensão das mudanças sociais para as quais queremos contribuir, além de reproduzir o sistema imposto por financiadores que, muitas vezes, estão distantes da nossa realidade. Foi assim que cheguei aos conceitos de Medir o que Importa. Na minha prática, essa expressão significa priorizar os indicadores e questionamentos que são realmente importantes para a organização e o contexto no qual ela está inserida, seja ela uma OSC, um movimento social, coletivo ou iniciativa informal. Apesar de recentes, essa mudança de perspectiva sobre M&A no setor tem gerado discussões críticas e profundas para nossa prática.
No dia 18 de abril, a Rede participou do evento “Measuring is Political – the Road from Bogotá” (Medir é Político – caminho desde Bogotá), como continuidade das discussões que travamos no #ShiftThePower Summit em Bogotá, em dezembro do ano passado. Durante o evento, representei a Rede falando da minha perspectiva sobre o tema, junto com Caesar Ngule, da Kenya Community Development Foundation, uma parceira da Rede no âmbito da Aliança Giving for Change. O evento foi parte de uma série de dois encontros e produziu reflexões importantes junto a mais de 100 pessoas, de diversos países, que têm buscado ressignificar os processos de M&A para torná-los mais úteis e relevantes nos seus contextos. O evento também contou com interpretação simultânea para português e espanhol, reforçando o compromisso de criar condições para participação igual de todas as pessoas. Aproveito para compartilhar aqui algumas das reflexões que têm reverberado em minha prática desde então.
Primeiramente, é importante compreender por que falar de Medir o que Importa é uma atitude política. Como mencionei anteriormente, os modelos de monitoramento e avaliação, muitas vezes, são impostos por financiadores que buscam satisfazer seus próprios requerimentos e interesses junto a organizações que apoiam. Sendo assim, esses modelos com frequência são limitados, incompletos e pouco relevantes para as comunidades das quais os dados são extraídos. Medir o que Importa é político porque questiona essa dinâmica de poder, refletida diretamente no quê e como medimos. Repensar os modelos que representam formas de pensar e fazer coloniais e capitalistas é político. Propor uma nova maneira de fazer e pensar abala essas estruturas de poder que ditaram o que devemos observar e medir. Esse processo também é político por exigir uma reflexão crítica sobre nossa própria prática, compartilhando vulneravelmente essas reflexões umes com outres e comprometendo-se com uma mudança que realmente reflita quem somos, o que fazemos e que mudanças queremos provocar em nossos contextos. Mudanças essas que são complexas e que apenas serão refletidas em modelos que permitam abraçar essa complexidade, alocando recursos (dinheiro, tempo, energia) para medir o que realmente importa. Por fim, vejo esse processo como algo político porque parte de nós, e não da demanda de um financiador.
Aqui na Rede Comuá, Medir o que Importa é um dos pilares da nossa forma de observar e avaliar o nosso trabalho e seus efeitos. Seguindo seus princípios, buscamos criar indicadores que são: (1) úteis e usáveis; (2) adaptáveis; (3) que gerem inspiração em vez de padronização e (4) que reforcem nosso compromisso com as pessoas e comunidades com as quais trabalhamos. Uma das áreas em que temos buscado implementar seus princípios é na nossa forma de medir o engajamento de membros com a rede como um todo. Escolhemos pensar no engajamento por ser um elemento crucial da nossa atuação e sustentabilidade como Rede. Enquanto financiadores normalmente se interessam apenas pelo número de participantes em cada um de nossos encontros internos, em seus dados demográficos e em alguns outros aspectos quantitativos, notamos que esses indicadores formam uma imagem incompleta de como enxergamos a complexidade de engajar membros diversos em uma rede focada em incidência em um sistema também complexo, que é o ecossistema filantrópico brasileiro.
A principal pergunta que fizemos a nós mesmes nesse processo foi “o que queremos aprender sobre o engajamento de membros com a Rede e entre si?”. Assim, algumas questões que surgiram eram: (1) o que o engajamento realmente significa para nós como rede?; (2) como cada membro se engaja com a Rede?; (3) o que impacta o engajamento dos membros?; (4) como poderíamos aprofundar o engajamento dos membros para que, na prática, seja significativo e realmente contribua para nossos objetivos de incidência? Nesse processo, notamos que nossas perguntas não têm a ver com alcançar um objetivo específico, quantitativo e perfeitamente mensurável, e sim chegar a aprendizados que importam para nós e aprimoram nosso trabalho de gestão da rede e de incidência coletiva.
A partir disso, notamos que, para nós, o engajamento vai além da participação em eventos internos e outros indicadores quantitativos. Adotamos uma visão de “comunidade”, em que o engajamento de membros significa incidência proativa e coletiva, intercâmbio de ideias e apropriação de agendas e espaços por parte das organizações que integram a Rede. Nosso objetivo é criar uma comunidade coesa, onde os membros se apoiem mutuamente, colaborem e se unam em torno de objetivos comuns. Ao repensarmos nossos indicadores de engajamento, percebemos a importância de elaborar medidas que realmente capturem a essência dessa comunidade.
Para isso, desenvolvemos dois eixos de indicadores de Comunidade: (1) Participação, para abarcar os indicadores que já medíamos e alguns outros fatores menos quantitativos e mais complexos da relação entre membros e (2) Incidência, para inserir as iniciativas coletivas, alianças e outras ações externas que partem do engajamento de e entre membros. Um fato curioso é que, inicialmente, pensamos em chamar esse segundo eixo de “Expansão”, mas logo percebemos que essa linguagem não reflete verdadeiramente nossos valores e objetivos, já que “expandir” está frequentemente associado a ganhar escala, replicar métodos, crescer. Percebendo a importância de adotar uma linguagem próxima ao que acreditamos e evitar reproduzir as ideias que rechaçamos, optamos, então, por utilizar o termo “Incidência”, que melhor representa nossas iniciativas de influência no ecossistema filantrópico, as quais se fortalecem, se aprofundam e se sustentam a partir da nossa Comunidade.
Apesar de termos avançado com essas reflexões, entendemos que esse é um trabalho em constante progresso, sujeito a ajustes e refinamentos à medida que aprendemos mais sobre nossa comunidade e seu engajamento. De fato, esse processo, para nós, gerou novas perguntas e nos fez voltar várias vezes à pergunta inicial: “e agora, o que queremos aprender? Onde queremos nos aprofundar?”.
Além disso, notamos também novos fatores que se somaram à complexidade do tema, o que nos chamou atenção para as limitações de Medir o que Importa. Apesar de surgirem muitas perguntas e de termos interesse em investigar criticamente todas elas, nem sempre teremos os recursos, o tempo e a energia para fazer um estudo aprofundado em cima do nosso trabalho. É importante priorizar e acolher nossas limitações ao longo do processo, trabalhando com o que temos, da forma que pudermos, usando as ferramentas e tecnologias disponíveis a nós.
Sabemos que não existe uma fórmula definitiva para medir o que realmente importa e que esse é um compromisso com o aprendizado constante, com a reflexão crítica sobre nosso trabalho e com a adaptação às necessidades e contextos em constante mudança.
Portanto, ao medirmos o engajamento dos membros na Rede Comuá, buscamos ir além dos números e estatísticas. Buscamos compreender o impacto real de nossas ações e fomentar uma comunidade engajada, onde cada membro possa contribuir dentro das suas possibilidades e potencialidades.
Finalmente, para medir o que importa, lembremos de nos perguntar: O que queremos aprender? Por que isso importa? Para quem importa? Como criar ferramentas e processos de M&A que reflitam o que realmente importa, respeitando nossas limitações? Na medida em que amadurecemos essas reflexões junto a membros da Rede e parceiros do Movimento #ShiftThePower, compartilharemos mais sobre o tema, permitindo que nossas reflexões também se reflitam em transformações na nossa prática e abalem as estruturas de poder do nosso setor.