Por: *Emilly Mel Fernandes de Souza e Lua Alves Belli
Você está familiarizado(a) com o fenômeno das mudanças climáticas? Caso contrário, é possível que tenha vivenciado seus efeitos nos últimos anos, especialmente no final de 2023, marcado por ondas de calor e chuvas torrenciais em diversas regiões do país. Mais recentemente, em 2024, uma tragédia ambiental atingiu o Rio Grande do Sul, resultando em danos materiais significativos e perdas humanas.
O relatório de 2023 do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) das Nações Unidas aponta que o uso insustentável da energia e da terra, aliado à queima de combustíveis fósseis, provocou um aumento de 1,1°C na temperatura global. Esse cenário desencadeou uma crise climática que afeta todas as pessoas, mas cujos impactos são desiguais. No Brasil, a desigualdade social exacerba esses efeitos, tornando as pessoas em situação de vulnerabilidade mais suscetíveis aos desastres ambientais, como bem aponta o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Por isso, a participação ativa dessas comunidades é crucial para desenvolver soluções eficazes e justas, levando em conta o contexto específico de cada grupo.
É paradoxal que as populações que menos contribuem para as emissões de CO2, como as pessoas trans e travestis, sejam as mais afetadas por eventos climáticos extremos. No Brasil, além dos desafios socioeconômicos e de saúde, essas pessoas enfrentam uma violência extrema que coloca o país como líder mundial em assassinatos de pessoas trans há 15 anos, conforme dados da ONG Transgender Europe (TGEU). Muitas dessas pessoas vivem em áreas mais vulneráveis a desastres naturais, como regiões propensas a inundações e deslizamentos ou com infraestrutura precária. Isso expõe essas comunidades a riscos maiores durante eventos climáticos extremos.
A “transfobia ambiental” é um conceito que descreve como a exclusão social e econômica força pessoas trans e travestis a residirem em locais mais vulneráveis devido a contextos históricos, sociais e políticos de exclusão (Benevides, 2024). Cabe ainda dizer que ao nomear a essa situação, se visibiliza a violência trazida pela injustiça climática em relação às pessoas trans e se interpela a pensar criticamente sobre essa demanda refletindo sobre suas peculiaridades. A ONG EmpoderaClima destaca que a transfobia estrutural contribui para que essas pessoas vivam em condições precárias ou componham uma parte significativa da população em situação de rua. Em situações de emergência climática, frequentemente são as últimas a receber assistência ou apoio governamental, evidenciando a necessidade urgente de medidas reparadoras e políticas inclusivas.
Na COP-27, povos originários compartilharam conhecimentos valiosos sobre os efeitos diretos das mudanças climáticas. Valorizar o conhecimento das comunidades que vivem na linha de frente desses eventos é essencial para promover a justiça climática. Isso inclui colocar grupos marginalizados, como pessoas trans e travestis, no centro das discussões e decisões que afetam suas vidas onde elas possam compartilhar o ônus e o bônus. (Robinson, 2021)
Para promover a justiça climática para pessoas trans e travestis, é necessário combater a discriminação e garantir acesso a recursos e proteção adequados. Isso envolve reconhecer e implementar os conhecimentos e experiências dessas comunidades, que frequentemente oferecem soluções inovadoras para mitigar os impactos climáticos. Além disso, é fundamental que suas vozes sejam ouvidas e que seus direitos sejam respeitados em todos os processos decisórios.
Impactos Específicos nas Pessoas Trans e Travestis:
- Acesso desigual a recursos e abrigos: Durante desastres naturais, pessoas trans e travestis frequentemente enfrentam discriminação ao buscar abrigo de emergência. A falta de respeito pela identidade de gênero pode resultar em exclusão desses espaços seguros.
- Impacto na saúde física e mental: A combinação da falta de acesso a cuidados de saúde adequados e o estresse das crises climáticas pode agravar problemas de saúde existentes. O aumento da discriminação e do estigma em tempos de crise também pode afetar a saúde mental.
- Vulnerabilidade econômica: Devido à discriminação no mercado de trabalho, muitas pessoas trans e travestis enfrentam dificuldades para acessar empregos formais, tornando-as economicamente mais vulneráveis. Em desastres, essa vulnerabilidade se traduz em uma recuperação mais lenta e difícil.
- Invisibilidade nas políticas públicas: As políticas climáticas muitas vezes ignoram as necessidades específicas das pessoas trans e travestis. Sem dados e análises que incluam essa comunidade, as soluções propostas podem falhar em proteger aqueles que mais precisam.
Nossa pesquisa mostra que o movimento trans e diversas organizações da sociedade civil (OSCs) estão na vanguarda da discussão sobre justiça climática, realizando ações de incidência política, capacitação de lideranças, letramento à comunidade na temática e iniciativas de formação em agroecologia e hortas comunitárias. Esses esforços demonstram que a comunidade trans possui conhecimentos e soluções essenciais para enfrentar a crise climática, mas falta o financiamento adequado para expandir e implementar esses projetos.
O financiamento de iniciativas que abordam a interseção entre justiça climática e as necessidades da população trans continua sendo um desafio. Sem recursos suficientes, essas comunidades permanecem vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas, revelando uma lacuna crítica na promoção da equidade de gênero e da justiça ambiental. É vital que a filantropia social comunitária priorize essas populações, ao invés de apenas grandes projetos hegemônicos.
Convidamos você a se comprometer com a defesa da justiça climática para pessoas trans e travestis. A conscientização e a participação ativa de todos são essenciais para promover a equidade ambiental. Explore práticas sustentáveis e busque mais informações sobre como contribuir para essa causa urgente e necessária.
¹Disponível em: https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/sirene/publicacoes/relatorios-do-ipcc/arquivos/pdf/copy_of_IPCC_Longer_Report_2023_Portugues.pdf
²Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/mudanca-do-clima/justica
³Disponível em: https://tgeu.org/trans-murder-monitoring-2023-global-update/ e em: https://transrespect.org/wp-content/uploads/2023/11/TvT_TMM_TDoR2023_Table.pdf
⁴Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ouv7oGYnUmA&list=PLxyKjM3Zwzd4869VUGp0mKxpMHIxtrktP&index=6mudancas-climaticas-lgbtq
⁵Disponível em: https://www.empoderaclima.org/pt/base-de-dados/artigos/mudancas-climaticas-lgbtq
⁶Robinson, M. (2021). Justiça climática: esperança, resiliência e a luta por um futuro sustentável. Civilização Brasileira.
NOTA: Este artigo faz parte do projeto de pesquisa “JUSTAS – Transfobia ambiental e justiça climática para pessoas trans: o que as organizações da sociedade civil e o movimento trans nos ensinam?”, de Emilly Mel Fernandes de Souza, desenvolvida no âmbito do Programa Saberes da Rede Comuá.
* Emily Mel Fernandes de Souza – Psicóloga Clínica graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte além de Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Seus temas de pesquisa estão voltados à fenomenologia, existencialismo, gênero, sexualidade, escrita e autobiografia e já atuou como Coordenadora do Fundo LGBTQIA+ do Fundo Positivo. Atualmente integra a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia – CFP.
* Luá Alves Belli – Educadora, analista de Diversidade, Equidade e Inclusão (DE&I) e empreendedora social. Atualmente, é Presidenta da Rede Inclusivah!, onde lidera iniciativas para garantir uma saúde digna para a população LGBTQIA+. Com uma sólida experiência em DE&I, Luá articula estratégias de impacto social e operações B2G como Chief Diversity Officer (CDO) na Go Beesiness, além de liderar o desenvolvimento de produtos na ÊLU.ed, uma edtech voltada para a saúde. Ela também se dedica ao desenvolvimento social de pessoas e negócios, atuando voluntariamente como Mentora de Negócios para pessoas trans na Associação Todxs e como Analista de Projetos em instituições que trabalham com grupos sub-representados, como o Coletivo Aboio, Instituto Grão de Mostarda e APC São Roque.