Abertura:
Olá, esse é o podcast Comuá, filantropia que transforma.
Aqui abordamos as práticas da filantropia comunitária e de justiça socioambiental.
Difundindo o seu potencial para apoiar a transformação social realizada pelas organizações da sociedade civil em seus territórios.
Nessa primeira temporada vamos apresentar o Knowledge Program da rede Comuá, que incentiva a produção de conhecimento no campo da filantropia comunitária e de justiça social a partir das práticas.
A produção de conhecimento sobre as transformações sociais nos territórios feita por quem atua neles.
Nada sobre nós sem nós.
Nesse sexto episódio vamos conversar sobre o projeto da Jész Ipólito, que busca reunir e sistematizar as perspectivas políticas de lideranças e organizações de mulheres negras do norte e do nordeste sobre o universo da filantropia negra.
Ronaldo Eli, outro bolsista do programa Saberes, está conosco para mediar a conversa com a Jézs.
Ronaldo:
Salve salve todo mundo que está ouvindo meu nome é Ronaldo de Iemanjá, sou zelador do terreiro Sítio das Matas e um dos bolsistas do programa Saberes da Rede Comuá.
Estou aqui pra trocar uma ideia massa com Jész Ipólito, que também é minha colega bolsista e ninguém melhor do que ela mesmo pra se apresentar.
Diga aí, Jész.
Jész:
Muito bom estar aqui com vocês, eu sou a Jész Ipólito. Eu faço parte aí do movimento de mulheres negras. Atualmente ainda construo a articulação nacional de negras jovens feministas, a revista formativa, mas sou uma comunicadora, trabalho com direitos humanos, comunicação e vou compartilhar um pouquinho de algumas inquietações, alguns processos.
Ronaldo:
É isso aí, seja bem-vinda Jész!
Conta para a gente um pouco do que te motivou a elaborar essa proposta, com esse formato, dessa maneira que você está executando agora.
Jész:
Quando eu vi a chamada do programa, eu fiquei muito instigada, porque eu tenho essa trajetória no movimento de mulheres negras sendo uma pessoa que é natural do sudeste.
Eu nasci, cresci no interior de São Paulo, mas por ali 19, 20 anos eu fui pra capital paulista, a partir da capital paulista eu comecei a conhecer os movimentos sociais, movimento de juventude e eu fui me aproximando muito do movimento social nesse contexto do sudeste, de São Paulo.
Em 2016 eu decido que eu vou estudar Gênero e Diversidade, indo para Salvador Bahia, onde eu começo a cursar essa graduação em Gênero e Diversidade na Universidade Federal da Bahia. Ali começa um novo portal a se abrir para mim.
Importante trazer esse contexto para que as pessoas entendam do lugar que eu estou partindo.
Quando eu chego em Salvador, quando eu começo a conhecer os movimentos de mulheres negras, quando eu começo a entender as dinâmicas que permeiam ali os movimentos de mulheres negras principalmente e os de juventudes também, eu começo a identificar que existem vários processos de invisibilização do nordeste e depois mais adiante eu vou descobrir que isso também acomete o norte do país.
Evidente que antes de viver em Salvador eu já sabia dessa dimensão de pouco investimento, invisibilização, com maiores indicadores sociais nas regiões do norte e do nordeste, mas vivenciar os movimentos sociais de mulheres negras estando nesse território me deu outra perspectiva de leitura social, de leitura crítica da sociedade.
Ali fez todo sentido pra mim, olhar o lugar que eu estava em São Paulo e avaliar o lugar que eu estava em Salvador e entender aqueles contextos diferentes apesar de serem lutas de mulheres negras.
Para mim foi fundamental passar por esse processo de formação política em Salvador e estando sempre em relação com outras organizações de mulheres negras ali de outros estados do Nordeste e do Norte também, da Amazônia.
Quando chega a proposta do Programa Saberes, foi uma oportunidade muito importante pra mim no sentido de querer aproximar esse universo que eu estava vivenciando da filantropia, desse investimento social privado para com essas organizações do Norte e do Nordeste que eu conhecia, que eu já sabia da trajetória e que eu também tinha alguma noção da dificuldade de acesso a recursos, por exemplo.
Para mim foi um estalo e também uma continuidade, porque eu já vinha de alguns processos interno, no movimento de mulheres negras, onde a gente discutia sobre acesso a recursos e sobre principalmente as dificuldades de você acessar recursos que fortaleçam institucionalmente e que não só apoiem o projeto com início, meio e fim.
Nesse sentido, é dessa vontade de visibilizar as organizações e os seus trabalhos, organizações de mulheres negras do Norte, do Nordeste, e o seus trabalhos nesse universo da filantropia.
Aqui no sudeste, e hoje nessa gravação eu estou falando no Rio de Janeiro, e nesse contexto do sudeste, a gente tem acesso a uma gama muito maior de debate sobre o campo da filantropia, sobre filantropia comunitária, sobre descolonização, sobre esses processos de inovação, que são fundamentais.
Temos acesso a essas discussões justamente porque as Instituições estão muito concentradas aqui. Mas quando você vai pro Norte, pro Nordeste, você não tem essa mesma concentração de Instituições, logo os debates são muito minguados.
Eu senti muito o impacto disso, eu senti a diferença de estar nesses dois territórios e o quanto cada território era alimentado de formas diferentes, o saberes de cada território.
A minha vontade mesmo foi de tentar construir uma conexão, de trazer essas perspectivas dessas mulheres negras, de lideranças de organizações de mulheres negras, para esse contexto da filantropia.
Conversar com elas para saber quais são as perspectivas que elas compreendem sobre esse universo da filantropia, que fala muito das mulheres negras, mas sem propriamente acolher de fato essas mulheres negras, entende?
Eu sinto e eu vivencio o que essas organizações de mulheres negras do Norte e do Nordeste vem falando há muito tempo. Que é essa concentração de renda no sudeste, sobretudo no campo das organizações e movimentos sociais.
É um modelo que se repete a nível estrutural e quando você vai afunilando recai nos movimentos sociais.
Eu na verdade não tô inventando nenhuma roda, eu não tô fazendo nenhum processo assim tão novo do ponto de vista de que elas já estavam falando sobre isso. No entanto, eu por conseguir transitar em outros espaços talvez consiga fazer essa ponte entre esses movimentos de mulheres negras e esse universo da filantropia
Para que as narrativas dessas mulheres negras sejam conhecidas, sejam de fato ouvidas, reconhecidas e respeitadas para que isso também gere um processo de fortalecimento. De entender, que: “Olha, tem muitas organizações para além do que vocês conhecem!”
É um pouco nesse caminho aí que eu elaborei minha proposta.
Ronaldo:
Jész, nessa análise que você faz da diferença que ocorre no desenvolvimento das organizações no Norte e Nordeste ou no Sudeste, tem também um componente racial importante, não é?
Jész:
Olha, com certeza o aspecto racial, assim a discriminação ela é muito presente. No entanto, um elemento muito forte que eu ouvi nas entrevistas e também já tinha ouvido antes junto com essas lideranças de mulheres negras, é que:
O território e o legado, a historicidade que esses territórios carregam eles se refletem no discurso e nas práticas e isso vai ser um dos elementos, que Organizações, Fundos, enfim Instituições do investimento social privado, que vão fazer com que eles não identifiquem quanto potencialidade essas organizações do Norte do Nordeste.
Mas o elemento racial, discriminatório está presente em ambos os territórios. No entanto, a radicalidade com o que as mulheres produzem as narrativas do Norte e do Nordeste, ela é muito diferente da que se produz no Sudeste.
Esse tem sido um elemento que as mulheres têm batido muito na tecla, que não é somente a partir dessa relação racial.
Porque até então são todas negras, são organizações negras.
E por que então lá há essa discrepância de apoio? Porque mesmo sendo organizações de mulheres negras ou de lideranças negras ainda assim você tem um baixíssimo apoio de organizações do Norte e do Nordeste?
Então existe aí o território, ele acaba se sobressaindo por conta de todo o processo histórico que foi travado em cima desses lugares. Você vai ter aí muitas diferenças, muitas nuances que no final das contas vão dar o tom e vão separar ali as organizações que vão receber aportes e também o valor e o tipo.
Eu identifiquei que essas lideranças com as quais eu conversei, elas têm muito mais dificuldade de acessar recursos de cunho institucional, por exemplo.
Elas até acessam recursos, mas são recursos de apoio pequenos, valores pequenos e são recursos para projetos e não para a instituição, logo elas estão mantendo as suas instituições, os seus institutos com dinheiro do próprio bolso.
Elas estão fazendo essa filantropia que a gente pode analisar por essa perspectiva, mas elas estão fazendo meio que um processo obrigatório de se autofinanciar.
Mas a ideia não era essa, a ideia é fazer o trabalho de fato que precisa ser feito, mas tendo apoio é sempre melhor, pois você pode sempre expandir e ampliar o trabalho.
Ronaldo:
Então Jész, massa. Eu estou achando interessante as informações que você vem trazendo nessa fala, os achados que você vem encontrando durante o processo.
E aí eu queria saber um pouco de qual metodologia você está usando para levantar essas informações?
Jész:
Eu tenho feito um processo de entrevistas semi-estruturadas e também tenho contado muito com o apoio das próprias participantes no sentido de me indicarem outras lideranças que elas acham interessante para essa entrevista, para esses assuntos.
Talvez uma metodologia bola de neve, algo por aí, se for falar mais em termos acadêmicos.
Mas eu tenho utilizado esse processo:
Eu marco uma reunião com elas, online mesmo, pois está todo mundo distante. Proponho algumas perguntas chave mas também deixo a nossa conversa fluir muito. Eu acabo fazendo algumas perguntas que não estavam previstas, porque a gente não tem como prever absolutamente tudo, mas tento manter ali um roteiro básico para que eu consiga absorver realmente o que elas estão pensando.
Tem sido uma experiência bem interessante.
Ronaldo:
E nesse processo você está sendo acompanhada pela organização que você faz parte, no caso a Revista Afirmativa, o Instituto Odara, não é isso?
Tem alguma instituição que está acompanhando você no processo?
Jész:
Eu tenho a minha mentora a Naiara Leite, que ela é do Odara Instituto da Mulher Negra, que a gente troca ideia, a gente conversa sobre os processos, eu converso com as minhas companheiras da Revista Afirmativa mas tem sido um processo mais solo do ponto de vista da execução e também os espaços das nossas reuniões do Projeto Saberes tem sido muito fortalecedor, pois é onde eu consigo também expor um pouco desses processos da pesquisa.
Então tem sido esses dois espaços.
Ronaldo:
Durante o processo de aplicação dessa metodologia, durante o processo desse trabalho, você teve que fazer alguma mudança de rumo importante?
Jész
Durante esse processo eu fui identificando alguns elementos que tem me feito questionar o produto final que originalmente eu propus, que é um formato de e-book.
Eu estou um pouco ainda navegando, conceitualizando, quais são as alternativas, o que eu poderia fazer para de fato acolher essas inquietações que o processo de entrevista me trouxe, entende?
Mas ainda não tá definido.
Talvez depois que já tiver lançado vocês poderão conferir o que de fato foi esse meu produto final, mas por enquanto eu ainda estou acolhendo essas inquietações, conversando aqui tanto com a equipe do Programa Saberes quanto com a minha mentora para entender onde é que eu posso caminhar para ser mais assertiva. Para que eu possa também estabelecer um processo proveitoso.
Para que depois de finalizar o Programa Saberes, como esse assunto pode ser abordado, qual vai ser o impacto disso depois.
Porque eu de fato quero fazer e propor uma pesquisa que se desdobre, que não finde em si mesma. A ideia é essa, é que tenha desdobramento, é que tenha impactos, é que seja de fato colaborativa para o nosso contexto, para que seja e para que sirva de algo, seja um apoio para futuros movimentos, enfim, para novos passos que coletivamente a gente vá dando.
Ronaldo:
Então, Jész, eu fico ouvindo você falando sobre o seu foco, de trabalho aí com esse projeto. E pensando um tanto, na minha proposta também que eu tô executando ao mesmo tempo que você e é bastante semelhante, só que ela é voltada para os povos de terreiro.
E ouvindo você falando das organizações de mulheres negras e eu fico pensando no quanto a nossa tradição matriarcal coloca as nossas mães pretas, as nossas ialorixás, a frente de organizações sociais em diversas situações de forma bastante significativa Brasil afora, e também no Norte e no Nordeste.
Pensando também que você também é do santo, você também é uma irmã de axé.
Como é que você vê esse lugar das lideranças de terreiro e das organizações de terreiro nesse contexto de organizações de mulheres negras no Norte e Nordeste que você vem trabalhando?
Jész
Elas realmente desempenham papéis assim fundamentais, principalmente de cura, mas também de auto-organização, de promover a autonomia dos grupos e de seus territórios. É muito interessante de se perceber.
Então, isso eu acho que é muito importante, mas também acho que aquelas que não estão, também desempenham o papel tal qual importante, sabe?
O que eu percebo é que de fato a presença dessas mulheres de axé, mesmo aquelas que não são lideranças dentro dos seus terreiros, não são ialorixás, enfim, mães pequenas da casa, mas mulheres negras de terreiro e que de fato tem a filosofia do terreiro como ponto central de sua vida, e isso vai refletir na sua prática.
Eu tenho vivenciado experiências lá no Nordeste, práticas realmente de convivência ali que são muito permeadas pelo axé. A gente não vai fazer uma manifestação sem alimentar a rua por exemplo, são coisas meio básicas assim que para as mulheres do axé é básico. Não vai se fazer uma reunião sem ter o que comer para as pessoas.
Além disso, a postura política, a combatividade, essa forma de pensar ela é de uma potencialidade e de uma radicalidade que a gente não está acostumado a ver aí por todos os lugares.
E justamente pela radicalidade que elas propõem, as suas organizações e suas iniciativas não são apoiadas de forma espontânea, sabe? Com grandes aportes e etc.
É de fato muito radical você propor o bem viver para uma população historicamente excluída. E não é isso que querem exatamente. É muito fortalecedor poder participar desses espaços e entender as diferenças.
É uma diferença muito grande assim poder vivenciar esses dois territórios diferentes, ambos são muito ricos.
Mas pra mim, eu percebo que de fato há uma potencialidade muito grande quando você implementa práticas ancestrais na sua prática política, porque daí você consegue fazer movimentos muito mais éticos, movimentos muito mais profundos.
Movimentos que de fato estão ali dialogando com uma realidade que às vezes pode passar batido em algumas circunstâncias, mas isso também não quer dizer que seja mil maravilhas, que seja o correto porque todos os espaços vão ter suas suas tensões políticas, vão ter várias problemáticas também.
Mas você ter o axé, ter essas políticas ancestrais como centro da sua vida e isso se refletir nos espaços políticos que você consegue estar, consegue construir, de fato faz muita diferença. É bem interessante poder vislumbrar esses dois territórios e poder fazer a conexão entre eles assim.
Ronaldo:
É isso aí, uma visão importante, uma visão ampla e necessária. A gente só acerta a flecha quando a gente enxerga o que tem que mirar.
Jész, muito rica essa conversa, acho que trouxe muitas reflexões para nós, para nossa gente e acho que, tenho certeza de que é uma contribuição fundamental.
Eu queria abrir espaço pra você se expressar antes da gente finalizar essa entrevista, imagino que tá sendo um momento pessoal e profissional muito rico também.
Então eu queria abrir pra você fazer suas considerações finais, acrescentar aquilo que possa ter faltando.
E já agradecendo pelo tempo, pela generosidade intelectual, pelo empenho que faz a gente ter essa oportunidade de ter essa conversa, de construir esse conhecimento que a gente tá construindo agora.
Então fica à vontade minha irmã!
Jész
Obrigada Ronaldo!
Eu acho que foi muito bom trazer alguns elementos aqui pra gente pensar juntos. No mais só tenho a agradecer também a esse processo de participar do Programa Saberes, dessa iniciativa.
Tem sido muito enriquecedor pra mim, tem sido muito desafiador também do ponto de vista de produzir de forma mais sistemática, mais cuidadosa os meus pensamentos, junto com o pensamento de outras mulheres negras.
Para mim isso tem sido muito fundamental do ponto de vista da importância e do reconhecimento também que é dado aos nossos projetos e isso é muito massa.
É muito gratificante participar de um programa que realmente reconhece e que tá de portas abertas para acolher as nossas demandas, as nossas dúvidas, as nossas inquietações.
Isso faz com que a gente queira estar aqui, faz com que a gente queira continuar, e eu tenho certeza que novas turmas virão, novos processos surgirão e que de fato vai ter um impacto muito positivo para as pessoas que fizerem parte do Programa Saberes.
Então só tenho a agradecer!
Obrigada também a você, Ronaldo pela disposição, por todas as perguntas, adorei fazer essa troca com você.
Brigadão para todo mundo que tá ouvindo também, viu?
Ronaldo:
É isso aí, então vamos fechando com muito axé.
Com a benção de todos os orixás e até a próxima!
Encerramento:
Esse foi o sexto e último episódio da Temporada Saberes do Podcast Comuá, Filantropia que Transforma.
O Programa Saberes fomenta a produção de conhecimento que sistematiza práticas da filantropia comunitária e de justiça socioambiental demonstrando sua potência para fomentar a transformação social.
O podcast Comuá, é uma realização da Rede Comuá.
Roteiro, produção e captação, da equipe executiva da Rede Comuá
Edição do estúdio Ybori.
Disponível nos principais agregadores de podcasts e no site redecomua.org.br
Até o próximo episódio!
Host: Ronaldo Eli
Entrevistada: Jész Ipólito
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