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Por: Yasmin Morais e Lucas Bulgarelli
Recentemente, temos testemunhado uma tendência preocupante no financiamento de iniciativas voltadas aos direitos LGBTQIAPN+ por parte do Investimento Social Privado (ISP). Essa tendência tem apontado para uma série de transformações e recuos, como as recentes práticas anti-diversidade nos Estados Unidos e o avanço de agendas contrárias aos direitos humanos e aos direitos LGBTQIAPN+, afetando diretamente as organizações e movimentos brasileiros, que seguem lutando para existir e resistir.
Neste contexto, este texto busca refletir sobre o constante desafio de mobilização de recursos por parte da população LGBTQIAPN+, bem como chamar atenção do campo filantrópico para a urgência de apoiar essa luta no Brasil.
Ameaças à diversidade
Uma tendência recente nos Estados Unidos nos chamou a atenção, onde empresas estão modificando suas abordagens em relação à diversidade, equidade e inclusão (DEI), com metas de representatividade sendo substituídas por métricas de desempenho e com a adoção de ações mais tímidas durante o mês de junho, período do ano em que se celebra o orgulho LGBTQIAPN+. Além disso, o termo DEI está sendo removido em favor de programas que enfatizam a inclusão de forma mais ampla, reduzindo o foco na importância de garantir um ambiente de trabalho diverso em termos sócio-demográficos, em resposta a uma crescente reação legal, social e política conservadora (Washington Post, 2024).
Essas mudanças são atribuídas a um movimento de rebranding, influenciado por políticos conservadores e legislação proposta que questiona e limita esforços de DEI em várias esferas. Nos Estados Unidos, por exemplo, pelo menos 82 projetos de lei contrários à DEI no ensino superior foram apresentados em mais de 20 estados desde o ano de 2023. Desses, 12 foram promulgados (New York Times, 2024).
Consultores e profissionais do setor estão ajustando terminologias, como substituir “diversidade” por “inclusão”, na tentativa de manter o progresso sem se envolver em temas politicamente contenciosos. Este movimento também é observado no Brasil, onde a agenda ESG, que, de certa forma, abarcou as agendas DEI, tem sido alvo de críticas de grupos de extrema direita articulados internacionalmente. Algumas empresas nos EUA, antes ativas em causas LGBTQIAPN+, reduziram suas ações relacionadas a esse tema em 2024, refletindo uma cautela crescente diante do ambiente político e social hostil às pautas de inclusão, em um contexto de avanço de pautas conservadoras e crescimento da direita a nível global.
Ricardo Sales, da consultoria Mais Diversidade, aponta que, historicamente, no tema da diversidade, o Brasil se inspirou no que é feito nos Estados Unidos (Meio & Mensagem, 2024), o que, a nosso ver, é preocupante quando se trata do apoio aos direitos LGBTQIAPN+ aqui no país. Por parte do Investimento Social Privado, há um temor crescente de que esse cenário possa influenciar a decisão sobre os apoios a organizações de defesa da diversidade sexual e de gênero.
Postagem da Casa1, centro de cultura e acolhimento de pessoas LGBTQIAPN+ na cidade de São Paulo
Cenário atual de apoio à agenda de direitos LGBTQIAPN+ no Brasil
Nos últimos anos, chama a atenção o aumento de parlamentares eleitos por terem se notabilizado na disputa contra os direitos sexuais e reprodutivos e os direitos LGBTQIAPN+. Uma reportagem da Agência Diadorim (2024) revelou que 80% dos estados brasileiros contam com projetos de lei contrários à população LGBTQIAPN+ – destes, três estados já transformaram os projetos em legislações. A análise ainda apontou que um projeto de lei contrário às pessoas LGBTQIAPN+ leva em média 5 dias para ser replicado de um parlamento a outro.
Apesar disso, ainda existem desafios significativos relacionados ao peso que a agenda de defesa dos direitos LGBTQIAPN+ ocupa nas organizações da filantropia nacional, conforme revelam os dados do Censo GIFE de 2020 e 2022. Das 1.015 iniciativas mapeadas, entre 55% e 65% não têm vínculos diretos ou transversais com temas de diversidade e equidade racial, de gênero, LGBTQIAPN+ e para pessoas com deficiência, refletindo uma lacuna alarmante na abordagem dessas questões.
Além disso, a ausência de dados governamentais sobre a população LGBTQIAPN+ também cria barreiras significativas para identificar o tamanho dessa população no Brasil e para qualificar suas necessidades e os principais gargalos para acesso a direitos.
Um exemplo de iniciativa que busca enfrentar esses desafios é o Projeto Pajubá (2024), criado pela Abong, Antra e ABGLT com apoio da Luminate. O projeto visa fortalecer organizações e coletivos que defendem os direitos da população LGBTQIAPN+ no Brasil, oferecendo formação, capacitação política, advocacy, e apoio institucional. Um diagnóstico recente realizado pelo Pajubá revelou a realidade precária enfrentada por essas organizações, especialmente a falta crônica de financiamento e sustentabilidade organizacional. Um dos principais obstáculos apontados é a escassez de recursos.
Enquanto algumas iniciativas têm buscado formas alternativas de captação de recursos, como a prestação de serviços, outras têm encontrado dificuldades de angariar até mesmo os recursos essenciais para manter suas operações. Ambos os cenários proporcionam uma situação de precarização das atividades de organizações e coletivos LGBTQIAPN+ criando prejuízos para a saúde mental de seus membros e limitando suas capacidades operacionais.
O quadro se torna ainda mais preocupante quando observado o montante de financiamento dedicado a organizações LGBTQIAPN+ frente aos recursos obtidos por entidades que defendem agendas anti-LGBTQIAPN+: de acordo com o relatório Global Resources Report (2021-2022), publicado pelo Global Philanthropy Project, apenas três organizações anti-LGBTQIAPN+ reportaram uma receita de mais de 1 bilhão de dólares entre 2021 e 2022, quantia maior que a receita de todas as 8.000 organizações apoiadas no campo dos direitos LGBTQIAPN+ mundialmente.
A falta de políticas específicas para promover a diversidade em conselhos deliberativos das organizações do ISP é também uma realidade preocupante, já que a representatividade em conselhos influencia diretamente nas práticas de doação das organizações. O Censo GIFE mostra que, quanto maior a diversidade dos conselhos, maior o apoio a organizações terceiras. Por exemplo, organizações sem a presença de pessoas negras e indígenas doam apenas 18% de seus recursos para a sociedade civil, enquanto organizações com a presença de pessoas negras e indígenas destinaram 46% de seus recursos para a sociedade civil (GIFE, 2022). É possível notar também que, quanto maior a diversidade em conselhos, maior a tendência das organizações de doar para a sociedade civil ao invés de investir em iniciativas próprias: organizações sem a presença de negros e indígenas investem 90% dos seus recursos em iniciativas próprias, enquanto organizações com a presença de negros e indígenas investem apenas 10% em projetos próprios (GIFE, 2022). Não temos dados com relação à presença de pessoas LGBTQIAPN+ em conselhos, mas as informações que temos apontam para um maior apoio dessa população quanto mais ela é representada em espaços de tomada de decisão. No entanto, em 2020, o Censo revelou que 66% dos investidores sociais não contavam com políticas para promover, ampliar ou assegurar a diversidade em seus conselhos. Em 2022, analisando especificamente o recorte LGBTQIA+, 81% das organizações não possuem políticas para ampliar a diversidade de pessoas LGBTQIAPN+ em seus conselhos e apenas apenas 4% das organizações declararam existir ações de promoção dessa diversidade nos conselhos.
A pesquisa do Projeto Pajubá (2024) também evidencia que a falta de interseccionalidade na abordagem de financiamento é um problema significativo. Uma pesquisa recente a Human Rights Funders Network, Funding for Intersectional Organizing: A Call to Action for Human Rights Philanthropy (2022), aponta que apoios para pessoas LGBTQIA+ está entre os que menos consideram interseccionalidades, o que limita ainda mais o acesso a recursos para iniciativas que abordam múltiplas formas de discriminação.
Essa falta de apoio financeiro adequado se reflete na vulnerabilidade das lideranças atravessadas por múltiplos marcadores sociais, como pessoas trans e travestis, populações negras e indígenas, e líderes em áreas rurais e periféricas. A crise climática também exacerbou essas desigualdades, tornando essencial o apoio estrutural e financeiro para organizações que enfrentam esses desafios interseccionais, conforme Yasmin e Mica Peres expressaram neste texto.
Contribuição da filantropia comunitária e de justiça social
A filantropia comunitária continua desempenhando um papel crucial no apoio às causas de justiça social no Brasil, especialmente através do compromisso de financiar agendas de direitos humanos, civis, sociais, econômicos e culturais. Essas organizações têm um foco particular na promoção e reconhecimento dos direitos de grupos historicamente excluídos de acesso aos direitos políticos, sociais e econômicos.
Com uma abordagem interseccional, essas iniciativas buscam fortalecer pautas que enfrentam discriminações e opressões, como as baseadas em raça/etnia, gênero, classe social, geração e orientação sexual. Pessoas negras, indígenas, de comunidades tradicionais, LGBTQIA+, com deficiência, de religiões afrodiaspóricas e outros grupos marginalizados são prioritários para essas filantropias (Rede Comuá, 2023).
Além disso, um dos principais enfoques dessas filantropias é o fortalecimento institucional, representando 74% de suas iniciativas, de acordo com o Mapeamento de Organizações doadoras independentes realizado pela Rede Comuá em 2022. O Mapeamento também revela que há um esforço crescente para priorizar a diversidade em equipes e cargos diretivos dessas organizações, embora ainda haja espaço para avanços nesse sentido.
É preciso apoiar a luta LGBTQIAPN+, com mais recursos, proteção e conhecimento
É crucial compreender a importância de lutar contra a marginalização de minorias LGBTQIA+ no campo filantrópico. Como destaca Mariam Gagoshashvili (2024), “como mulheres, como pessoas queer e trans, enfrentando opressão sistemática e marginalização, nossos corpos são campos de batalha dentro de nossos próprios países e comunidades” .
No campo filantrópico, essa realidade não é diferente. Os desafios enfrentados por esses grupos são significativos, incluindo a luta constante para garantir necessidades básicas enquanto sustentamos nossos ativismos.
Além disso, a proteção e segurança são questões urgentes para defensores de direitos LGBTQIA+. No Brasil, estamos diante de um cenário extremamente violento, onde ocorre um assassinato de pessoa LGBTQIA+ a cada 38 horas (Observatório de Mortes Violentas LGBTI+ no Brasil, 2023). O Brasil também enfrenta uma grave crise de saúde mental, sendo o país com a maior prevalência de depressão na América Latina (Ministério da Saúde, 2022).
Conforme destacado pela Comunidade de Prática da Rede Comuá focada em Proteção e Segurança (2023), em um contexto tão adverso, por que não priorizar a proteção e segurança das organizações da sociedade civil e das doadoras, especialmente da filantropia independente, que estão na linha de frente dessa luta? […] Como podemos ignorar que as pessoas que constituem essas organizações muitas vezes têm seus direitos e sua própria existência negados?
Além disso, é importante apoiar mais pesquisas que ampliem nosso entendimento e abordagem em relação às necessidades das organizações LGBTQIAPN+. Exemplos são pesquisas que estão sendo desenvolvidas na segunda turma do Knowledge Program da Rede Comuá, como a pesquisa “Justas: Transfobia ambiental e justiça climática para pessoas trans”, de Emily Mel Fernandes e Souza e a pesquisa “Cadê o Aqué: Mapeando ausências, (des)encaixes e possibilidades entre as organizações de travestis e mulheres transexuais e a filantropia no Brasil”. Esses dois estudos trarão dados inéditos para somar à luta LGBTQIAPN+ no Brasil.
É essencial, portanto, que a filantropia não apenas reconheça, mas também ativamente apoie a luta LGBTQIAPN+, resistindo a pressões mercadológicas e garantindo que recursos sejam direcionados a quem está na linha de frente, lutando para existir todos os dias.
Yasmin Morais é uma pessoa cúir/queer e pansexual. Graduada em Relações Internacionais pela University of Boston/Universidade Anhembi Morumbi e mestre em Poder, Participação e Mudança Social pelo Institute of Development Studies. Atualmente, é Assessora de Programas na Rede Comuá.
Lucas Bulgarelli é Diretor-executivo do Instituto Matizes e secretário jurídico da ABETH (Associação Brasileira de Estudos da Transhomocultura). Bacharel em Direito (USP), Mestre (USP) e Doutorando (USP) em Antropologia Social. Pesquisador do Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS-USP). Foi Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo (OAB/SP) (2019-2021) e consultor para agências da ONU como UNFPA, OIT e ACNUDH.
Sources:
Agência Diadorim. Como surgem e se espalham os projetos de lei contra LGBTQIA+ no Brasil. https://adiadorim.org/reportagens/2024/05/como-surgem-e-se-espalham-os-projetos-de-lei-contra-lgbtqia-no-brasil/. Acesso em: 27 jun. 2024.
Alliance Magazine. What do foreign agent laws have to do with gender ideology? Reflections from the HRFN-Ariadne joint day. Alliance Magazine. Disponível em: https://www.alliancemagazine.org/blog/what-do-foreign-agent-laws-have-to-do-with-gender-ideology-reflections-from-the-hrfn-ariadne-joint-day/ . Acesso em: 25 jun. 2024.
Meio & Mensagem. Marcas e mês do orgulho: Houve recuo na abordagem da pauta LGBT. Meio & Mensagem. Disponível em: https://www.meioemensagem.com.br/marketing/marcas-e-mes-do-orgulho-houve-recuo-na-abordagem-da-pauta-lgbt . Acesso em: 25 jun. 2024.
Washington Post. DEI affirmative action rebrand evolution. Washington Post, 2024. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/business/2024/05/05/dei-affirmative-action-rebrand-evolution/. Acesso em: 25 jun. 2024.
GIFE. Censo GIFE 2022-2023. Sinapse, 2022. Disponível em: https://sinapse.gife.org.br/download/censo-gife-2022-2023. Acesso em: 25 jun. 2024.
Global Philanthropy Project. Global Resources Report (2021-2022): Government & Philanthropic Support for Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender, and Intersex Communities. https://globalresourcesreport.org/wp-content/uploads/2024/06/GRR_2021-2022_WEB-Spread-Colour_EN.pdf. Acesso em: 27 jun. 2024.
Rede Comuá. Filantropia que transforma:mapeamento de organizações independentes doadoras para sociedade civil nas áreas de justiça socioambiental e desenvolvimento comunitário no Brasil, 2023. Disponível em: https://redecomua.org.br/wp-content/uploads/2023/09/REDE-COMUA_Filantropia-que-transforma_v2-1.pdf. Acesso em: 25 jun. 2024.
Abong. Projeto Pajubá. Disponível em: https://abong.org.br/projeto-pajuba/. Acesso em: 25 jun. 2024.
Observatório de Mortes Violentas LGBTI+ no Brasil. Disponível em: https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org /. Acesso em: 25 jun. 2024.
Rede Comuá. Por que falar sobre proteção e segurança no campo da filantropia comunitária e de justiça social? Disponível em: https://redecomua.org.br/por-que-falar-sobre-protecao-e-seguranca-no-campo-da-filantropia-comunitaria-e-de-justica-social/ . Acesso em: 25 jun. 2024.
Ministério da Saúde. Na América Latina, Brasil é o país com maior prevalência de depressão. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/setembro/na-america-latina-brasil-e-o-pais-com-maior-prevalencia-de-depressao. Acesso em: 25 jun. 2024.
New York Times. At least 82 bills opposing D.E.I. in higher education have been filed in more than 20 states since 2023. Of those, 12 have become law, including in Idaho, Indiana, Florida and Texas. New York Times, New York, 12 abr. 2024. Disponível em: https://www.nytimes.com/2024/04/12/us/diversity-ban-dei-college.html. Acesso em: 26 jun. 2024.