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Tributação e filantropia: caminhos para o fortalecimento da sociedade civil no Brasil

Tributação e filantropia: caminhos para o fortalecimento da sociedade civil no Brasil

Foto: Marcha das Margaridas 2023/Fundo Brasil

Por: Ana Valéria Araújo e Graciela Hopstein*

Um dos maiores desafios da sociedade civil brasileira é superar a escassez de recursos para apoio e expansão de suas atividades. A falta de recursos está atrelada a uma cultura de doação ainda pouco consolidada, o que, por sua vez, decorre de fatores como: limitações do marco legal e falta de incentivos fiscais para doações; desconhecimento sobre a relevância do trabalho de organizações da sociedade civil; e falta de confiança dos doadores.

A filantropia brasileira, embora conte com um ecossistema consolidado e com recursos expressivos destinados para a área social (4,8 bilhões investidos em 2022), não tem sido capaz de cobrir o vácuo deixado pela filantropia internacional que começou a se retirar do Brasil no início dos anos 2000.

De acordo com os dados do Censo GIFE (que reúne as maiores organizações da filantropia brasileira, com destaque para fundações empresariais e familiares), em 2022 foram investidos R$1,8 bilhões no campo social. O repasse a terceiros, que envolve doações para a sociedade civil e vinha crescendo, ainda que modestamente, desde 2016, observou uma queda de R$ 1,1 bilhão na comparação com dados de 2020, voltando a ficar abaixo do volume investido em iniciativas próprias (R$ 2,1 bilhões), isto é para o desenvolvimento de programas conduzidos pelos próprios doadores.

A situação é especialmente complexa quando se trata de grupos de base comunitária, movimentos sociais e organizações que lutam por justiça socioambiental e respeito aos direitos humanos. São poucas as entidades filantrópicas locais que doam para esse segmento, com foco na defesa de direitos.

Os fundos de justiça social e fundações comunitárias (filantropia independente), que constituem uma face estratégica da filantropia brasileira para fazer chegar recursos a esses grupos, também enfrentam desafios para mobilizar fundos dentro do país. De acordo com a pesquisa Mapeamento de organizações independentes doadoras para sociedade civil nas áreas de justiça socioambiental e desenvolvimento comunitário no Brasil (desenvolvida pela Rede Comuá em parceria com a pAp, em 2023), a maior parte dos recursos por elas mobilizados vem de fontes internacionais.

Historicamente, o Brasil tem uma legislação desfavorável, que vem funcionando como obstáculo para melhorar a estrutura filantrópica no país. O imposto sobre legados e doações (ITCMD) e a falta de regulamentação sobre endowments adicionam um fardo substancial para doadores, minando em parte os esforços de mobilização de recursos.

Houve avanços com a aprovação da reforma tributária em 2023 no sentido da isenção do ITCMD para organizações sem fins lucrativos com finalidade de relevância pública e social, o que deverá impactar positivamente a cultura de doação no país. Porém, isso ainda precisa ser regulamentado. E de acordo com a publicação Perspectivas para a Filantropia no Brasil 2024, do IDIS, nas fases posteriores à aprovação da reforma tributária, haverá ainda oportunidades para expandir incentivos fiscais para doações a organizações da sociedade civil no país.

Embora haja quem pondere sobre a legitimidade de incentivos fiscais, que transferem aos doadores aquilo que, de outra forma, seria recurso público, é fundamental compreender a relevância do aumento do apoio às organizações da sociedade civil, que afinal fazem um trabalho de interesse público e são fundamentais na defesa de direitos no país. Experiências setorizadas no Brasil mostram que incentivos fiscais de fato criam um ambiente favorável ao desenvolvimento da filantropia naquele campo e fortalecem a cultura de doação.

Para além de avançar na criação de incentivos fiscais, também é fundamental fortalecer iniciativas voltadas à distribuição de riqueza, como a taxação de grandes fortunas, no intuito de aumentar o volume de recursos para o fortalecimento de agendas de direitos humanos, de cidadania e de justiça socioambiental.

Recentemente, no contexto do G20, que este ano acontece no Brasil, esse tema ganhou relevância e será uma das propostas do governo brasileiro para a cúpula, propondo um imposto mínimo de 2% da riqueza dos bilionários (indivíduos com mais de 1 bilhão de dólares de riqueza). A proposta do governo brasileiro é apresentar um modelo de tributação progressiva, começando pelos “super ricos”, cujos recursos seriam destinados para a criação de fundos públicos para financiamento de políticas públicas, como por exemplo, para ações de combate às mudanças climáticas.

Embora essa proposta seja estratégica, organizações da sociedade civil vão enfrentar dificuldades para acessar esses fundos, apesar de serem atores essenciais no enfrentamento à crise climática, implementando soluções locais de emergência e de apoio à conservação e proteção das florestas e da biodiversidade, de adaptação e resiliência comunitária. Será necessário superar a complexidade dos processos de financiamento para fazer com que os recursos cheguem aos territórios, a grupos e movimentos de base.

Um arcabouço legal que carreie recursos para fundos públicos, crie incentivos para as doações filantrópicas e condições de transparência no uso adequado dos recursos deve trazer mais segurança para doadores. A pergunta que se impõe é se melhores incentivos fiscais serão suficientes para aumentar as doações para a sociedade civil.

Pesquisas no contexto da filantropia brasileira demonstram que o país conta com uma cultura de doação de baixa intensidade, considerando o seu potencial econômico. Na atualidade, o Brasil está entre as 10 maiores economias do mundo. Depois de figurar por alguns anos entre as 20 nações mais doadoras, segundo o World Giving Index de 2023, o país caiu para a posição 89. Houve queda em todos os indicadores, sendo a mais acentuada a de doações para ONGs, que passou de 41% para 26%.

Por sua vez, a Pesquisa Doação Brasil (do ano 2022), sobre o cenário das doações de pessoas físicas, fornece informações cruciais sobre as motivações, percepções e expectativas de doadores e não-doadores no país. O estudo desenvolvido pelo IDIS aponta para uma cultura de doação motivada majoritariamente por questões emergenciais e assistencialistas, afastando-se das agendas de justiça social e de acesso a direitos. A pesquisa mostra ainda que são dois os principais fatores alegados para não doar ou interromper doações: falta de recursos e preocupações sobre como o dinheiro seria usado.

Os desafios enfrentados pelas organizações da sociedade civil podem ser atribuídos ao baixo conhecimento dos doadores sobre a relevância do trabalho que realizam, somado à falta de confiança em relação ao setor. A criminalização que a sociedade civil vem sofrendo de forma sistemática desde o início dos anos 2000 pode ser um dos fatores determinantes para essa falta de confiança.

Certamente, a escassez de recursos para organizações da sociedade civil não é um assunto menor, levando em conta que se trata de um setor estratégico para a consolidação e defesa da democracia. No contexto atual, no qual as democracias estão ameaçadas e enfraquecidas, e dado o cenário de regressão das agendas de direitos historicamente conquistados, isso precisa ser considerado.

Neste sentido, a filantropia de justiça social é crucial para desenvolver uma filantropia mais estratégica, que tenha possibilidade de ruptura com relação a antigos modelos e seja capaz de apoiar mudanças estruturais profundas que apontem para um país muito menos desigual.


*Ana Valéria Araújo é diretora executiva do Fundo Brasil

Graciela Hopstein é diretora executiva da Rede Comuá

Artigo originalmente publicado na Alliance Magazine.

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