Foto: Rede Comuá
Graciela Hopstein, diretora executiva da Comuá, se prepara para deixar a Rede no mês de setembro, após uma gestão de sete anos. De 2017 até 2024 foram muitas as conquistas e avanços. Ao longo desse período, a Rede se consolidou como ator político estratégico junto aos ecossistemas filantrópicos nacional e internacional, mas também muitos foram os desafios enfrentados.
Nessa entrevista, Graciela destaca os principais marcos de crescimento da Comuá ao longo da sua gestão, fala dos desafios e oportunidades, e também sobre futuros.
“A Rede tem perspectivas muito boas de crescimento, com a consolidação do seu papel no ecossistema da filantropia. Mas vai ter que estar atenta a um cenário que se apresenta adverso, com ascensão e crescimento da extrema direita no mundo e no Brasil, com visíveis retrocessos nas agendas de direitos, situação que pode levar à retração dos recursos para a filantropia de justiça socioambiental, apesar da situação de emergência. Entretanto, a Rede está muito bem posicionada perante o cenário, mas a preocupação que paira no ar está relacionada à escassez de recursos financeiros que ainda são pouco acessíveis para a sociedade civil.”
Como descreveria a Rede quando você assumiu a diretoria executiva, e agora, com o término de sua gestão?
Quando assumi a coordenação em 2017, a Rede estava passando por uma crise aprofundada, já que ao longo dos primeiros cinco anos, atravessou por diversos problemas de condução, situação que impactou a sua atuação e no engajamento dos membros, inclusive porque estava em questão a continuidade das suas atividades. A situação financeira estava também bastante delicada. Além dos desafios internos, havia também os externos. Desde o momento em que surge, em 2012, a Rede criou um impacto significativo no ecossistema da filantropia, já que seus membros traziam debates relacionados à agendas que eram consideradas incômodas – focadas no combate ao racismo, a questões de gênero, ambientais, junto grupos como povos indígenas, populações quilombolas- , com dinâmicas de atuação e visões sobre o campo muito diferentes, por ser feita com e para movimentos, completamente oposta à filantropia tradicional. Por ser uma filantropia inovadora, distributiva, voltada a apoiar sociedade civil, principalmente minorias políticas, a Rede chegou para chacoalhar o setor. Inicialmente, a Rede tinha uma aproximação muito mais relevante com a filantropia internacional, levando em conta que o grande percentual de recursos que os membros geriam naquela época e também na atualidade vinha e vem dessa fonte. A aproximação com o ecossistema filantrópico nacional também era um desafio que devíamos enfrentar naquele momento, portanto iniciamos um processo de articulação com o GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), com a ABCR (Associação Brasileira de Captadores de Recursos), a partir de parcerias e da participação em eventos e debates vinculados à filantropia nacional.
E ainda era preciso mobilizar recursos para a Rede, que sem dúvida era um dos grandes desafios. Nos primeiros nove meses da minha gestão, acabei trabalhando de forma voluntária e essa situação implicou uma sobrecarga para o exercício da função, porque tinha que dar conta não apenas dos desafios da organização, mas de me sustentar financeiramente. Quando assumi a coordenação da Rede estava consciente desse impasse, entretanto eu tinha a convicção que ela tinha um grande potencial de contribuir com o campo e, portanto, não podia fechar as portas. Não fazia sentido ter nadado tanto para morrer na praia. Digo isso porque é importante ressaltar que acompanhei a trajetória da Rede desde a sua criação, considerando que eu fui membra, representando o Instituto Rio, uma das organizações fundadoras.
Feita essa contextualização, posso dizer que há grandes diferenças entre a Rede que eu peguei, em 2017, e a que deixo agora, em 2024. Quando assumi a coordenação, a Rede contava com nove organizações, que inclusive não estavam em plena sintonia, porque demoramos a encontrar nossa identidade e posicionamento comum. A Rede começou como um espaço de troca entre pares, de aprender uns com os outros, mas hoje ela tem um papel muito diferente, porque é um ator político no ecossistema da filantropia. E ser um ator político criou novas exigências, implicando ações vinculadas ao fortalecimento de capacidades dos membros, desafios de comunicação, de posicionamento e de produção de conhecimento. O crescimento se deu não apenas na quantidade de membros (hoje somos 18), mas na área programática e, principalmente, na agenda política.
Hoje a Rede conta com recursos expressivos, com financiadores importantes. E para essa mudança de papel foi também muito relevante a construção de uma nova identidade. Os processos de renaming e rebranding vieram no sentido de consolidar a sua atuação e posicionamento. Hoje a Rede conta uma equipe executiva – nos primeiros anos eu trabalhei praticamente sozinha, com apoio de algumas consultorias – com governança estabelecida, e é reconhecida no âmbito nacional, regional e internacional.
Qual o balanço que você faz do crescimento da Rede nesses anos?
O crescimento da Rede veio acompanhando e refletindo o crescimento das organizações membro, que aconteceu de uma forma bem evidente em termos de sua capacidade de mobilizar recursos, de doação, de articulação e de criar dinâmicas inovadoras. O que estava acontecendo no início era uma defasagem entre o crescimento dos membros e uma Rede que estava enfraquecida. O fortalecimento da Rede acompanhou o crescimento da filantropia independente. O balanço que faço é que houve uma consolidação da filantropia independente no Brasil.

Que estratégias e marcos você destacaria nesse processo?
O lançamento do livro “Filantropia de Justiça Social, Sociedade Civil e Movimentos Sociais no Brasil”, organizado por mim e lançado em 2018, coletânea de artigos que contou com a participação expressiva dos membros e parceiros do setor, certamente foi um marco na trajetória porque demonstrou que a Rede continuava viva e tinha muito para contribuir com o campo da filantropia.
O planejamento estratégico realizado em 2019 também foi um marco importante, porque nos apresentou rumos, orientações e diretrizes para a atuação. Tínhamos um plano traçado até onde queríamos chegar, construído de forma participativa com os membros. E esse era um outro desafio que tínhamos na época, e que vem acompanhando a Rede, o engajamento das organizações membro. Conseguimos grandes conquistas a partir do planejamento, inclusive em termos do envolvimento das organizações com o seu projeto político.
Há alguns turning points muito importantes nessa trajetória. No início da minha gestão, foi muito importante o relacionamento com o GIFE (especialmente na gestão do José Marcelo e da Neca Setubal), um parceiro importante que abraçou a agenda de filantropia comunitária. Fizemos muitas coisas em parceria, consolidando o relacionamento com um ator estratégico para o setor. Outro ponto destacado foi a mobilização de recursos expressivos com financiadores que continuam nos apoiando até a atualidade: a Inter-American Foundation e a Porticus. E eu diria que o grande ponto de virada foi em 2021, com a integração da Rede à Aliança Giving for Change, vinculada à Cooperação Holandesa, que nos permitiu criar o Programa de Incidência e dar muito mais relevância aos trabalhos que já vínhamos fazendo, de produção de conhecimento, posicionamento e comunicação.
O seminário de dez anos da Rede marcou um antes e depois em termos de posicionamento, mostrando que de alguma forma a Rede tinha e tem sentido no ecossistema da filantropia nacional e internacional, com muito a agregar e colaborar.
E particularmente no cenário político destaco alguns momentos que foram importantes. Quando assumi a Rede em 2017, estávamos vivendo uma crise política complexa no país, que foi se aprofundando até o governo Bolsonaro. Depois tivemos que enfrentar a pandemia, o que foi muito disruptivo e mobilizante para todo mundo. E para as organizações membro da Rede também. Esses episódios foram relevantes em termos de engajamento, coesão, para a criação de uma identidade comum e de estratégias colaborativas, não apenas entre a Rede, mas também com todo o ecossistema da filantropia. Houve uma consolidação sobre a relevância das doações para a sociedade civil, uma consciência por parte do setor cidadão sobre a importância de criar mecanismos de assistência, de reparação, de apoio aos mais vulneráveis. Obviamente que isso implicou também todo um movimento da filantropia, que efetivamente abriu as suas carteiras para fazer investimentos importantes. E isso também trouxe impactos positivos para a Rede e seus membros.
Depois de 2022, entramos em um outro momento, que embora seja muito mais interessante em termos de democracia e agendas, contraditoriamente o setor filantrópico passou a perder a força colaborativa construída até então. E não estou falando da Rede, que continua, e cada vez mais, fortalecendo sua colaboração, mas do ecossistema, que está atuando muito mais na chave da concorrência, da competição, do que da colaboração. Então os desafios continuam existindo. Mas obviamente que a Rede está muito melhor posicionada para enfrentar tudo isso.
Quais as perspectivas de futuro?
A Rede tem perspectivas de crescimento muito boas. Mas vai ter que estar atenta a um cenário que se apresenta adverso, com a ascensão e crescimento da extrema direita no mundo, e também no Brasil, e à possibilidade de retração dos recursos para a filantropia. A Rede está muito bem posicionada perante o cenário, mas a preocupação que paira no ar é o que vai acontecer com os recursos financeiros, pouco acessíveis para a sociedade civil.
Acredito que a liderança do Jonathas Azevedo também vai trazer novas perspectivas e posicionamentos. Por se tratar de uma pessoa jovem que conhece bem a Rede, os membros e os parceiros, e levando em conta a sinergia das suas visões com o trabalho que a gente vem desenvolvendo, é uma garantia de continuidade da sua atuação, mas ao mesmo tempo vai trazer ares renovados.
Para mim, especificamente, as perspectivas futuras são de continuar colaborando com o setor social, com o campo da filantropia, mas de um outro lugar. Pensando em fazer consultorias, produzir conhecimento, em fazer parcerias desde outro ponto de vista. Não perder essa malha colaborativa, de parcerias, esse capital social que foi se construindo. Acho que o momento da Rede traz a necessidade de renovar a liderança, deixando uma marca diferente.
Porque enfim, acho que saímos das cinzas, estamos realmente crescendo, ocupando um espaço relevante, somos reconhecidos e ganhamos visibilidade, e agora é momento de ver como a Rede vai manter e solidificar esse crescimento.