Foto: Rogério Marques / Adobe Stock
Por: Daiany França Saldanha*
Durante minha pesquisa para o Programa Saberes 2024, observei 11 ONGs do Nordeste e 10 do Norte, em sua maioria pequenas, que enfrentam grandes dificuldades para captar recursos, especialmente através da Lei Federal de Incentivo ao Esporte (LIE). A distribuição dos recursos incentivados está consideravelmente concentrada na região Sudeste. Para ilustrar, dos mais de 1.700 proponentes únicos que acessaram a LIE entre 2014 e 2023, 86% estão localizados nas regiões Sudeste e Sul (Painel de Transparência da LIE).
Esse cenário se agrava quando consideramos que o Brasil possui mais de 63 mil ONGs voltadas para “esportes e recreação” (Mapa das OSCs), muitas das quais desempenham um papel multifacetado, atuando transversalmente em áreas como educação, saúde e combate à violência. Apesar dessa relevância, especialmente local, essas organizações seguem sistematicamente excluídas, perpetuando um ciclo de desigualdade regional e concentração de doações nos mesmos estados e perfis de organizações.
Na minha visão, a baixa captação de doações para ONGs de esporte representa uma oportunidade desperdiçada pela filantropia empresarial e familiar brasileira, especialmente no que diz respeito à promoção de inclusão social e desenvolvimento comunitário (por meio do esporte). Segundo o Censo GIFE 2022-2023, 20% das organizações respondentes atuam em esporte e lazer quando analisadas por áreas temáticas (múltiplas respostas). No entanto, essa área não aparece entre os focos prioritários de atuação quando a pergunta é de resposta única, revelando completa falta de interesse pelo esporte no campo filantrópico.
Noutra pesquisa realizada pelo Instituto MOL, que envolveu fãs de esportes, o esporte sequer é mencionado entre as causas que as pessoas apoiam financeiramente. Isso destaca o quanto essa área é subfinanciada e marginalizada, mesmo entre aqueles com afinidade pelo tema, contrastando com o apoio a causas mais universais, como o combate à fome ou a proteção à infância.
O contraste fica ainda mais evidente quando observamos a concentração dos investimentos sociais em áreas como a educação. Conforme ressaltado em texto elaborado para o Portal Impacta Nordeste, essa preferência pode estar alinhada às lógicas de mercado e aos interesses de institutos e fundações, que frequentemente priorizam suas próprias iniciativas. Além disso, essa abordagem predominantemente top-down muitas vezes gera soluções insustentáveis e inadequadas para os desafios locais, apontando para falhas sistêmicas mais profundas na filantropia tradicional.
A LIE e seu potencial para mudar o jogo
A LIE pode ajudar a provocar uma mudança interessante nesse contexto. Em 2023, a Lei Federal de Incentivo ao Esporte registrou 5.883 projetos apresentados, um aumento de 93% em relação ao ano anterior, enquanto a captação de recursos superou R$ 948 milhões, crescendo 69% em comparação a 2022. Embora promissores, esses números sugerem que o mecanismo ainda não alcançou plenamente seu potencial, já que historicamente nunca foram captados mais de 40% dos recursos anuais disponíveis. Essa realidade aponta para uma oportunidade de expansão e reforço no alcance da LIE, que, com ajustes e reposicionamento estratégico, poderia beneficiar de forma mais equitativa as organizações esportivas em todas as regiões do país.
Desafios estruturais
A pesquisa revelou tanto oportunidades quanto desafios para o ISP e a LIE, mas ainda há lacunas importantes a serem superadas para que possamos avançar de forma estratégica no campo filantrópico e esportivo no Brasil. Um dos principais desafios é a cultura de doação, que ainda está em desenvolvimento no país.
Apesar de o Brasil alcançar, ano após ano, recordes na apresentação de projetos à LIE e nos valores de patrocínios incentivados, muitos indivíduos e empresas continuam pouco engajados com as leis de incentivo. Em 2022, estima-se que mais de 12 mil empresas poderiam ter patrocinado projetos incentivados, mas não o fizeram. Além disso, há um potencial de R$ 8 bilhões disponíveis para projetos incentivados na modalidade de doação de pessoa física. Esse cenário, agravado pela falta de conhecimento e pela burocracia nas doações, limita o impacto social positivo que o país poderia gerar por meio do esporte.
Por fim, a concentração geográfica dos investimentos é outro ponto crítico. Em 2023, por exemplo, 70% dos recursos captados pela LIE foram destinados ao Sudeste, deixando regiões como o Norte e Nordeste subfinanciadas.
Filantropia Comunitária como aliada
Durante a pesquisa, observei que, para pequenas ONGs de esporte, a sustentabilidade financeira vem principalmente de doações dos próprios integrantes, apoio da comunidade local, parcerias com organizações maiores e, em alguns casos, da geração de renda própria (como bazares e rifas) e parcerias com governos municipais.
O apoio comunitário se destaca como um sustentáculo para a sobrevivência dessas organizações, fornecendo recursos financeiros e fortalecendo os laços locais e o senso de pertencimento. Esse suporte cria redes de confiança e reciprocidade, onde a comunidade atua como parceira ativa na transformação social, contribuindo com conhecimentos, habilidades e conexões. Em um cenário onde o acesso a grandes doadores e incentivos fiscais é limitado, essa mobilização comunitária torna-se um catalisador de resiliência e impacto coletivo, permitindo que as organizações se adaptem aos desafios e respondam diretamente às necessidades da população que atendem.
Hora de Mudar o Jogo
Estou muito entusiasmada em dizer que a parceria entre o Programa Saberes e a Rede Comuá me inspirou a desenhar uma nova iniciativa: Mudar o Jogo, um movimento voltado para descentralizar e atrair mais investimentos para a causa do esporte no Brasil, com lançamento previsto para breve.
Parte desse projeto está sendo desenvolvida enquanto participo do Global Sports Mentoring Program (GSMP) 2024, promovido pelo Departamento de Estado dos EUA, entre outubro e novembro. O GSMP oferece uma oportunidade de criar e expandir um plano de ação voltado para a promoção de igualdade e inclusão no esporte, levando o Mudar o Jogo a novos patamares e envolvendo sociedade civil, investidores e lideranças esportivas em uma transformação estrutural no setor.
Sei que há muito a ser discutido e explorado nesse tema, envolvendo diversos atores do campo. Esse trabalho também faz parte do meu doutorado, intitulado Decolonizar o esporte no Brasil: perspectivas das ONG esportivas sobre os impactos e desafios da Lei Federal de Incentivo ao Esporte, realizado no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Douglas Roque Andrade.
Produtos desenvolvidos no âmbito do Programa Saberes:
- Newsletter Mamão com Rapadura: Assine no LinkedIn aqui.
- Série de textos sobre Filantropia Comunitária e de Justiça Social para o Blog do Impacta Nordeste: Leia aqui.
Movimento Mudar o Jogo (a ser lançado em breve): O movimento Mudar o Jogo surge com o objetivo de convocar a sociedade civil e investidores sociais a apoiar o futuro do esporte e a promover projetos esportivos de qualidade. A ideia foi formulada durante a pesquisa do Programa Saberes e na Change the Game Sport Conference, realizada pela UNESCO em Paris nos dias 23 e 24 de julho, em celebração aos Jogos Olímpicos, da qual tive a oportunidade de participar presencialmente.
*Este artigo faz parte do projeto de pesquisa “ISP e leis de incentivo: explorando as relações entre investidores e ONGs do Nordeste”, de Daiany França Saldanha, desenvolvido no âmbito do Programa Saberes da Rede Comuá.
Autora: Daiany França Saldanha é Descentralizadora de recursos e informação no 3º setor e esporte, doutoranda e Mestra em Mudança Social (EACH/USP).