Por Jonathas Azevedo
Entre os dias 28 e 30 de Março, tive a oportunidade de representar a Rede Comuá no National Advocacy and Influencing Workshop, em Johanesburgo (África do Sul), promovido pela African Philanthropy Network e facilitado pela Tara Consulting. O encontro se inseriu no âmbito do Programa Doar para Transformar, que está dividido em três domínios de atuação:
Domínio 1. Apoio ao poder das comunidades locais a partir de atores da sociedade civil, entendendo a filantropia comunitária como uma forma de expressarem as suas opiniões, reivindicarem direitos e manifestarem solidariedade e dissidência;
Domínio 2. Incidência sobre atores nacionais, sejam governos, filantropos, organizações da sociedade civil ou doadores individuais, a fim de fortalecer a agenda da filantropia comunitária voltada para promoção de direitos humanos;
Domínio 3. Incidência sobre atores internacionais, influenciando a cooperação internacional para o desenvolvimento, e pautando a valorização da filantropia comunitária e apropriação local dos processos de desenvolvimento.
Reunindo cerca de 30 representantes de organizações líderes do consórcio (Kenya Community Development Foundation, Global Fund for Community Foundations, Wilden Ganzen e African Philanthropy Network) e dos oito países envolvidos no Programa (Brasil, Burkina Faso, Etiópia, Gana, Quênia, Moçambique, Palestina e Uganda), o encontro teve como foco o domínio 2, de incidência a nível nacional, com uma ênfase especial nas agendas de gênero e inclusão. Os principais objetivos do workshop foram: i) trocar experiências sobre práticas e estratégias de advocacy nos diferentes países; ii) identificar caminhos conjuntamente para endereçar os principais desafios presentes em cada contexto; iii) construir um plano de ação conjunto para fortalecimento conjunto das estratégias de incidência. Além das experiências das organizações presentes, outra importante base para este encontro foram os estudos sobre ambientes legais para atores da sociedade civil realizados no âmbito do Programa. O estudo do caso brasileiro pode ser encontrado na biblioteca da Rede.
Desenho de estratégias de advocacy e interseccionalidades
“Minha esperança é que um dia todos tenhamos direitos iguais. Para mim, esta luta é uma túnica sem costura. Opor-se ao apartheid era uma questão de justiça. Opor-se à discriminação contra as mulheres é uma questão de justiça. Opor-se à discriminação com base na orientação sexual é uma questão de justiça”. – Desmond Tutu
A citação acima estava nos murais da exposição Truth to Power, no Museu do Apartheid em Johanesburgo, África do Sul, para celebrar a vida e o ativismo de Desmond Tutu, arcebispo da Igreja Anglicana que foi consagrado com o Prêmio Nobel da Paz em 1984 por sua luta contra o Apartheid ao lado de figuras como Nelson Mandela e tantos outros homens e mulheres que lutaram pelo fim deste regime que ainda deixa suas marcas no país. Sua fala segue, infelizmente, pertinente no atual contexto, em que vemos uma crescente de casos de feminícidios, transfobia e outras tantas formas de discriminação, tanto no Brasil, quanto em outras partes do mundo.
No âmbito do Programa Doar para Transformar, esta luta mencionada por Desmond Tutu se traduz não só nas práticas comunitárias promovidas pelas organizações parceiras, em seus diferentes contextos, mas assume ainda uma centralidade no que se refere à incidência tanto a nível nacional, quanto internacional. Considerando seu objetivo maior de rediscutir as lógicas de poder que embasam a filantropia e a ajuda internacional, o programa defende que as estratégias de incidência promovidas por seus membros, individual e coletivamente, devem ser desenhadas de forma a garantir que a defesa pelo acesso a direitos, em especial de populações marginalizadas, seja central. Dessa maneira, tratar de questões como gênero, racismo e inclusão são chaves.
Um advocacy desconectado desse debate tende, então, a reproduzir as mesmas dinâmicas de poder pautadas na supremacia branca, no colonialismo e na violência que se expressa a partir do racismo, do machismo, da LGBTQIA+fobia, do capacitismo e outras formas de discriminação, muitas vezes mascaradas sob o véu das boas intenções e do “fazer o bem”. Trabalhar nos campos da filantropia e da ajuda internacional não nos isenta da responsabilidade de revisitar nossos privilégios e reconhecer que, sim, ainda é necessário realizar debates desconfortáveis no setor. Em outras palavras, não podemos falar de uma filantropia realmente transformadora se não se colocar no topo da agenda o enfrentamento a discriminações e violências que ainda assolam, em especial, mulheres negras e indígenas e pessoas trans, nas suas diversas formas de ser e existir.
Na Rede Comuá, reafirmamos este compromisso com a luta por acesso a direitos no desenho e implementação do nosso Programa de Advocacy. Nos questionamos e nos desafiamos constantemente a fim de garantir que as vozes, saberes, vivências e práticas de representantes de grupos minorizados estejam representades em nossas narrativas e produções, pautando assim nossa incidência voltada ao ecossistema filantrópico e a atores da esfera pública não-estatal, evidenciando também o papel facilitador da filantropia comunitária e de justiça socioambiental, expressa na prática das nossas 16 organizações membro, nas lutas de movimentos sociais, coletivos e organizações, em sua maioria lideradas por representantes de populações minorizadas.
Em suma, é importante nos perguntarmos: de que maneira as estratégias de incidência das nossas organizações promovem a agenda de acesso a direitos e de justiça socioambiental, seja no campo da filantropia ou em nossos campos específicos de atuação? Quais passos podem ser dados nessa direção? Finalmente, deixamos também o chamado a se somarem à luta por uma filantropia que, de fato, apoia processos de transformação.