Foto: Congerdesign / Pixabay
Por: Cleber Rodrigues*
No mundo contemporâneo, onde as necessidades sociais são crescentes e os recursos nem sempre chegam às comunidades que mais precisam, surgem iniciativas que resgatam a essência da solidariedade e promovem a participação dos próprios moradores. A filantropia comunitária é uma dessas iniciativas, caracterizada por um senso de responsabilidade compartilhada, em que a comunidade se torna protagonista na busca por soluções para seus próprios desafios. Esse modelo de atuação vai além da caridade, pois envolve um compromisso coletivo de transformar realidades locais e fortalecer o bem-estar de todos os envolvidos. Em vez de depender exclusivamente de grandes doações externas, a filantropia comunitária se fortalece pela participação dos moradores e atores locais, construindo um senso de pertencimento e autonomia, para que a própria comunidade identifique e responda às suas necessidades. Essa abordagem, que remete a práticas ancestrais de apoio mútuo e ajuda coletiva, não apenas incentiva o engajamento e as doações, mas também amplia o impacto das ações voltadas para o bem viver dentro dos territórios.
Entre as várias demandas que uma comunidade pode identificar, as necessidades de pessoas idosas frágeis e em situação de vulnerabilidade ocupam um papel de destaque, especialmente em comunidades com baixo acesso a serviços de saúde, apoio social e condições de vida digna. A filantropia tradicional durante muito tempo ajudou e ajuda lares e asilos na árdua tarefa de cuidar de seus idosos. Porém trago neste texto uma outra lente de possibilidades, onde a filantropia comunitária, com sua abordagem de rede local, oferece caminhos e mecanismos de apoio que podem alcançar, dentro dos territórios, pessoas e organizações que amparam esses idosos de maneira digna. Pessoas idosas frágeis, que frequentemente enfrentam limitações financeiras, isolamento e condições de saúde mais delicadas, encontram em suas comunidades, apoiadas muitas vezes pela filantropia comunitária, um suporte que não apenas provê cuidados e assistência, mas também promove a cultura do respeito, à inclusão e o bem-estar.
O estatuto do idoso no Brasil apresenta a pessoa idosa como aquela que tem 60 anos ou mais. O crescimento dessa população é uma realidade mundial, e no Brasil, esse fenômeno tem se acentuado nas últimas décadas. Segundo dados atuais do IBGE, a população com 60 anos ou mais já representa uma parcela significativa dos habitantes, e as projeções indicam que, em breve, teremos uma população idosa maior do que a de crianças e adolescentes. Dados como o índice de envelhecimento consideram que a população com 60 anos ou mais chegou a 80,0 em 2022, com 80 pessoas idosas para cada 100 crianças de 0 a 14 anos. Esse aumento exige obviamente políticas públicas fortes voltadas à prevenção e ao acolhimento dos mais longevos e portanto dos mais vulneráveis, mas também ações comunitárias de grupos organizados da sociedade civil que desenvolvem projetos para essa população em específico. O envelhecimento traz consigo necessidades reais, que vão desde cuidados médicos frequentes até espaços de convivência e suporte emocional, e muitas comunidades têm buscado soluções locais para acompanhar essa transição e apoiar seus membros mais velhos.
Nas comunidades tradicionais, o envelhecimento é, muitas vezes, celebrado como um símbolo de sabedoria e respeito. Nessas culturas, o idoso é considerado um guardião das histórias, valores e conhecimentos da comunidade, sendo reconhecido e honrado por sua contribuição. Nessas comunidades o papel das pessoas idosas é fundamental na manutenção das tradições, e seu bem-estar é visto como responsabilidade coletiva. Esses valores, muitas vezes transmitidos de geração em geração, fortalecem o vínculo da comunidade com seus idosos e promovem uma perspectiva de envelhecimento mais digna e integrativa.
Fora dessas comunidades tradicionais, a lente do capitalismo faz com que o idoso muitas vezes seja visto como não produtivo, frágil e incapaz. Essa visão torna o zelar por pessoas idosas, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade, uma tarefa pesada e árdua, chegando muitas vezes a ser negligenciada entre os familiares. As necessidades básicas, como saúde, alimentação, segurança e moradia, se tornam mais desafiadoras conforme o envelhecimento avança. Infelizmente, os custos associados aos cuidados adequados para idosos frágeis são elevados e muitas vezes inviáveis para famílias e comunidades de baixa renda. Nesse contexto, faz-se necessária a criação de ILPIs (Lar de Longa Permanência para Idosos), muitos desses lares apoiados pela filantropia comunitária.
Relato de Caso: A Associação dos Protetores das Pessoas Carentes em Crucilândia, Minas Gerais
Um desses lares, situado em uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, em Crucilândia, é a Assopoc. Uma instituição de longa permanência que se destaca como uma das maiores do estado de Minas Gerais, oferecendo cuidados contínuos e humanizados para mais de 160 idosos. Em uma cidade de 5 mil habitantes, a instituição atua como um porto seguro para idosos que, em sua maioria não possuem vínculos familiares sólidos, alguns carregam histórias de abandono, negligência e violência. A Assopoc se torna, assim, mais que uma instituição: ela se torna família, lar e rede de apoio para esses acolhidos.
A infraestrutura da organização conta com três enfermarias e uma equipe médica disponível 24 horas por dia, sete dias por semana. Além disso, profissionais de áreas como psicologia, nutrição, fisioterapia, fonoaudiologia, assistência social e arteterapia trabalham diariamente para promover a saúde, a funcionalidade e a qualidade de vida dos moradores. Programas de saúde física, como o da Equoterapia, somam mais de 8 mil atendimentos anuais, recuperando habilidades e ampliando a autonomia de cada residente. A manutenção desses serviços exige uma operação intensa e organizada. Cerca de 3 toneladas de alimentos e 24 mil fraldas por mês refletem a dimensão do trabalho desenvolvido. A estrutura dessa e de tantas outras instituições só se torna viável graças ao apoio da filantropia comunitária e da solidariedade de parceiros e voluntários, que entendem o valor social de cuidar daqueles que já não podem contar com suas próprias forças ou redes familiares.
O cuidado com a pessoa idosa é um dever multifacetado que envolve tanto o estado quanto às famílias e a comunidade. Embora o estado brasileiro ofereça políticas públicas externas para a população idosa, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Sistema Único de Saúde (SUS), esses mecanismos muitas vezes não oferecem atendimento de maneira integral e ágil à complexidade das demandas da população idosa vulnerável. Diante disso, instituições semelhantes em todo o mundo emergem como pilares importantes que ajudam a integrar comunidade e filantropia e assim essas organizações auxiliam nas lacunas deixadas pelo estado e oferecem um acolhimento integral à população idosa frágil.
Ao longo do ano, a instituição organiza eventos que mobilizam recursos significativos para a manutenção de seus projetos. Um dos destaques é o tradicional leilão anual, que se tornou uma fonte sustentável de arrecadação de fundos que apoiam os projetos ao longo do ano. Outras atividades incluem bazares beneficentes, vendas de produtos durante festividades como a Inter-fazendas, promovida pelo Núcleo Mangalarga Marchador da Grande Belo Horizonte, além da captação de recursos por meio de projetos aprovados e doações de pessoas físicas, que formam uma base constante de apoio. Todas essas informações estão no site da organização, bem como os demais projetos desenvolvidos.
O voluntariado também é uma força essencial na comunidade, a qual pretendo me dedicar em um próximo texto, mas apenas para contextualizar e deixar um gosto de “quero saber mais”, a instituição promove uma cultura de engajamento, incentivando a participação de voluntários da cidade e, especialmente, de seus colaboradores, que frequentemente atendem aos chamados para participar e apoiar as atividades. Todo esse voluntariado fortalece a missão da organização e garante que a comunidade se sinta parte integrante do trabalho de acolhimento e cuidado.
A experiência da Assopoc em Crucilândia, e não apenas dela, mas das incontáveis organizações do terceiro setor que trabalham a pauta do envelhecimento, em especial a fragilidade, evidenciam como a filantropia comunitária pode ser uma ferramenta importante na transformação social, promovendo dignidade, bem-estar e inclusão para idosos em situação de vulnerabilidade. No entanto, resta uma reflexão importante: em uma sociedade que envelhece rapidamente, como podemos ampliar os esforços coletivos e a responsabilidade compartilhada para assegurar que cada idoso viva com dignidade? O papel do Estado, famílias e sociedade civil, incluindo a filantropia comunitária, é cuidar dos mais frágeis, promovendo um envelhecimento pleno e respeitoso para todos.
*Cleber Rodrigues é fisioterapeuta gerontólogo, gestor em saúde pelo Instituto Federal do Norte de Minas Gerais e criador do programa PAPSAUDE, voltado à promoção da saúde de pessoas idosas em Santa Luzia, onde cofundou o Coletivo LGBTQIAPN+. Empreendedor na comunidade da Vila Nova Esperança por meio da Casa Mirants, um espaço voltado à transformação social e ao impacto positivo no território. Atualmente, atua como Conselheiro Fiscal da Associação Nossa Cidade, e a partir da experiência dela, desenvolveu a pesquisa de sistematização do Fundo Regenerativo de Brumadinho e suas aplicações no campo da filantropia comunitária, no âmbito do Programa Saberes da Rede Comuá.