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Filantropia de justiça social: É possível falar em filantropia colaborativa e em participatory grantmaking sem considerar questões relacionadas aos direitos humanos e a justiça social?

Por Graciela Hopstein – Coordenadora executiva da Rede de Filantropia para a Justiça Social

No ano de 2018 quando foi lançado o livro “Filantropia de justiça social, sociedade civil e movimentos sociais no Brasil” [1], uma das questões fundamentais que motivaram a produção da publicação foi colocar os conceitos de filantropia e grantmaking [2] de justiça social no cerne do debate. De fato, umas das teses principais levantadas ao longo da coletânea foi a de que no Brasil o conceito de filantropia carrega historicamente conotações pejorativas e está normalmente associado a ações de caridade. Para superar esta tendência, foi instalado o conceito de investimento social privado (ISP, substituindo de forma frequente a noção de filantropia) por ser comumente “mais aceito” pela sociedade civil e pelo setor cidadão.

Partindo deste cenário, um dos desafios da coletânea era poder desconstruir e construir (de forma simultânea) o conceito de filantropia, recuperando o seu significado original “de humanitarismo, de ajuda e de amor pelo próximo” e destacar a importância da doação de recursos para organizações da sociedade civil (principalmente de pequenas e médias), mostrando uma diversidade de práticas de grantmaking nas áreas de direitos humanos e de justiça social, estratégia que consideramos fundamental para o fortalecimento do setor e, portanto, da democracia brasileira.

Passados quase três anos desde então, podemos corroborar que conceitos como filantropia, cultura de doação e grantmaking vem ganhando outro fôlego, reconhecimento e aceitação por parte de diversos atores que atuam no setor filantrópico e no ISP no Brasil.

Não podemos deixar de mencionar que esta tendência, tal vez incipiente e tímida, é resultado do intenso e perseverante trabalho de incidência (advocacy) desenvolvido pelos atores que integram o ecossistema filantrópico local [3] através de um conjunto diversificado de ações como a produção de publicações, vídeos e a promoção de debates em seminários, grupos e redes temáticas.

Embora ainda devamos enfrentar diversos desafios vinculados tanto às narrativas construídas, como à compreensão desses conceitos (e as suas práticas) por um público mais amplo, podemos observar (insisto que de forma tímida) algumas tendências que indicam a expansão e o fortalecimento de práticas diversificadas de grantmaking e da cultura da doação no Brasil.

A Rede de Filantropia para a Justiça Social (Rede) – integrada na atualidade por 13 membros – é um ator estratégico no apoio a organizações e movimentos sociais no Brasil. A partir de ações diversificadas de grantmaking nas áreas de direitos humanos e de justiça social, as organizações da Rede doaram de forma direta (através de repasse de recursos) um total de R$ 197.129.770,71 (desde a sua criação até o ano de 2018) para ativistas, defensores de direitos, movimentos, grupos/coletivos, redes e organizações da sociedade civil brasileira.

De acordo com os dados do Censo GIFE 2018 (GIFE, 2019), as práticas de grantmaking têm se tornado cada vez mais relevantes no contexto do ISP brasileiro e “embora a execução direta de projetos próprios ainda prevaleça em volume financeiro, o percentual de recursos destinados a projetos, programas, ações ou gestão de terceiros cresceu de 21% para 35% de 2016 a 2018, atingindo a proporção mais alta da série histórica” [4]. Inclusive, podemos afirmar aqui a existência de parcerias entre fundações e institutos empresariais e familiares com os membros da Rede, o que indica o fortalecimento de ecossistema filantrópico local a partir de práticas colaborativas e de articulações entre diversos atores envolvendo fundações e fundos locais e organizações filantrópicas internacionais, a partir da criação de alianças com capacidade de viabilizar doações significativas para a sociedade civil, em diversas frentes e áreas de atuação para públicos diferenciados.

Também, é possível observar que a cultura da doação vem se fortalecendo de forma visível, dando um salto significativo no contexto da pandemia. De acordo com o Monitor das Doações da ABCR [5], como resposta à COVID-19, no ano de 2020 foi doado um montante de R$ 6.538.338.648, de 554.843 doadores. A pergunta que surge a partir destas informações é: trata-se de uma dinâmica que se instalará de forma definitiva na sociedade brasileira ou é uma mobilização pontual em resposta a uma emergência e/ou catástrofe social?

Como resultado do aumento de recursos destinados para grantmaking e das múltiplas iniciativas existentes voltadas para a ampliação e fortalecimento da cultura de doação [6], conceitos como filantropia colaborativa, venture philanthropy [7] e participatory grantmaking (grantamking participativo) tem emergido e se instalado de forma visível no contexto do ecossistema filantrópico local.

De acordo com o texto da autoria da Erika Saez e da Graziela Santiago [8] (publicado neste blog) a ideia da filantropia colaborativa refere-se às práticas de colaboração entre atores da filantropia – doadores ou gestores de recursos filantrópicos – em relação à mobilização, coordenação, alocação e/ou gestão de recursos financeiros privados para a produção de bem público. Por sua vez, o conceito de participatory grantmaking que surge a partir de movimentos ativistas de base, representa um contraponto aos modelos tradicionais de se fazer filantropia, descentralizando “o controle de tomada de decisão sobre a alocação dos recursos às próprias comunidades afetadas [que se beneficiam dele]” (CANDID, 2020) [9].

Podemos encontrar elementos comuns nos conceitos apresentados: colaboração, alianças, parcerias, diversidade de atores, relações de horizontalidade, participação, cocriação etc. Entretanto, a partir da análise das práticas filantrópicas em nível local, podemos reconhecer algumas limitações na concretização desses conceitos, isto é, nas formas de fazer filantropia. E é a partir dessa afirmação que surgem as seguintes perguntas: como são construídas as agendas do financiamento social? Os grantees e/ou os potenciais donatários participam efetivamente dos processos de cocriação e de tomada de decisão? As áreas de financiamento estão alinhadas apenas com as agendas dos doadores ou são consideradas também as necessidades e demandas dos grantees/atores sociais que atuam no campo?

Para avançar com a análise, consideramos que é necessário fazer algumas ponderações com relação aos conceitos apresentados.

Em primeiro lugar, é importante reconhecer as limitações derivadas de abordagens conceituais essencialistas porque, de fato, não são os conceitos que guiam as ações, mas o contrário. Partindo de uma abordagem material, os conceitos surgem a partir da reflexão e da análise sobre as práticas, experiências e ações desenvolvidas em diversos contextos por uma multiplicidade de atores. Considerar os conceitos como guias para conduzir ações pode derivar na imposição de modelos prontos, numa dinâmica instalada, na maioria das vezes, de cima para baixo, desconhecendo as particularidades e especificidades das diversas realidades e contextos sociais, e das características dos atores envolvidos. Estas ações muitas vezes dão lugar à instalação de discursos tecnocráticos e distorcidos, esvaziando os conceitos de sentidos, principalmente pela ausência do reconhecimento da potência do que realmente existe e acontece nos campos de atuação [10].

Seguindo esta linha analítica, e para avançar com a construção de uma filantropia local que efetivamente incorpore práticas colaborativas e participativas, é fundamental instalar um “giro decolonial” (abandonando a perspectiva da colonialidade) entendido como a tentativa de romper com as estruturas e os saberes legados do processo de colonização. A decolonialidade admite que existe uma imposição dos conhecimentos do norte global predominantemente brancos e masculinos, em detrimento dos saberes da população negra em África e diásporas, mulheres, povos originários, população LGBTIQ+, entre outros grupos e minorias políticas.

Desde essa visão/abordagem, é fundamental incluir algumas reflexões estratégicas que permitam pensar a filantropia participativa e colaborativa desde uma perspectiva política. De fato, mobilizar recursos e/ou doar para a sociedade civil (através de ações de grantmaking) são práticas que devem ser concebidas como um ato político porque implicam o reconhecimento da existência de dinâmicas e atores sociais com capacidade de organização, de dar resposta aos problemas que enfrentam de forma autônoma, a partir das suas potencialidades e necessidades, e com um papel protagonista nos processos de tomada de decisão. A questão do poder também se instala como um tema-chave e prioritário, levando em conta que na relação doador e donatário não se trata de empoderar ou “dar poder” a grupos e organizações da sociedade civil, mas de reconhecer o poder que eles têm na capacidade de buscar soluções de forma autônoma e da sua potência de atuação.

Trata-se então de construir uma filantropia local visibilizando aquilo que historicamente esteve invisível aos olhos da filantropia tradicional ou mainstream, reconhecendo a potência de minorias políticas, dando voz às margens, às periferias, às comunidades, aos movimentos e organizações da sociedade civil, entendendo que não são apenas receptores das doações e executores de projetos, mas sujeitos políticos capazes de, por si mesmos, transformar as realidades sociais nas quais estão inseridos.

Incluir uma perspectiva de direitos humanos e de justiça social é fundamental para atuar no campo filantrópico porque, de fato, podemos afirmar que não é possível desenvolver estratégias de filantropia colaborativa e práticas de grantmaking participativo no contexto de relações opressivas e sem reconhecer o espaço político, o poder de voz e decisório dos atores envolvidos. Trata-se então de ressignificar e tropicalizar [11] conceitos à luz das dinâmicas locais, entendendo que eles assumem dimensões e sentidos de acordo com as suas modalidades de atuação, nos diversos contextos sócio-políticos.

Para concluir, e tentando responder à pergunta inicial, na nossa visão, a construção de um campo filantrópico colaborativo e participativo no Brasil só será possível na medida em que possam se instalar efetivamente abordagens de justiça social e de direitos humanos. Esse é o ponto de partida fundamental para a alcançar um ecossistema filantrópico local sólido e efetivamente inclusivo e democrático.

[1] HOPSTEIN, Graciela (Organizadora); Filantropia de justiça social, sociedade civil e movimentos sociais no Brasil; Rio de Janeiro: E-Papers; 2018. [2] Para a Rede de Filantropia de Justiça Social as práticas de grantmaking consistem no apoio financeiro para fomentar o trabalho de organizações da sociedade civil, grupos, lideranças e movimentos. [3] Integram o ecossistema filantrópico brasileiro a Rede de Filantropia para a Justiça Social, o Gife, ABCR (e as suas redes de associados), Idis, Movimento por uma Cultura de Doação e empresas de consultoria social como a Move, Ponte a Ponte, Mobiliza, entre outras. [4] Boas práticas na relação entre financiadores e donatários. Nota Técnica Número 2. São Paulo: Gife, 2020 disponível em https://sinapse.gife.org.br/download/boas-praticas-na-relacao-entre-financiadores-e-donatarios [5] Fonte: https://www.monitordasdoacoes.org.br/pt [6] Dia de Doar, Movimento por uma cultura de doação, pesquisa doação Brasil [7] Venture philanthropy é um modelo no qual prevalece o investimento social e a ideia de apoio ao empreendedorismo numa abordagem que pretende inovar na relação entre movimentos sociais e empresas [8] SAEZ, Erika e SANTIAGO, Graziela. Filantropia, investimento social e colaboração. Disponível em https://www.redefilantropia.org.br/post/filantropia-investimento-social [9] Boas práticas na relação entre financiadores e donatários. Nota Técnica Número 2. São Paulo: Gife, 2020. Disponível em [10] Esta discussão foi aprofundada no documento “Expandindo e fortalecendo a filantropia comunitária no Brasil” especialmente com relação à questão de limitar o entendimento do conceito filantropia comunitária às fundações comunitárias, nos moldes do modelo americano. Documento disponível em https://www.redefilantropia.org.br/publicacoes/expandindo-e-fortalecendo-a-filantropia-comunit%C3%A1ria-no-brasil. [11] Para um aprofundamento sobre a tropicalização de conceitos, vinculados especificamente ao campo da filantropia, consultar o documento elaborado pela Rede, Expandindo e fortalecendo a filantropia comunitária no Brasil, disponível em https://www.redefilantropia.org.br/publicacoes/expandindo-e-fortalecendo-a-filantropia-comunit%C3%A1ria-no-brasil

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