Por Selma Moreira & Fernanda Lopes
A relação entre a população negra e a filantropia é antiga sendo a maior expressão as Irmandades Negras. Criadas durante o período colonial, estas estruturas organizativas possibilitavam aos negros ocupar e definir formas de atuação social, custear despesas para um padrão mínimo de dignidade, funerais, por exemplo. Eram espaços de resistência e solidariedade frente à hostilidade imposta pelo escravismo. Atualmente dos 207,8 milhões que residem no Brasil, 46,5% se declararam pardos, 9,3% pretos e 43,1% brancos.
Ademais o contingente populacional seja significativo, o acumulo histórico de renda e desigualdade de oportunidades resultou em um abismo econômico e sociorracial entre negros e indígenas e os demais. Indicadores sociais de escolaridade, condições de habitação, participação política, emprego e renda, todos, sem exceção expressam a desigualdade na distribuição do poder e evidenciam o papel estruturante do racismo na organização econômica, política e simbólica da sociedade. As ações filantrópicas empreendidas por organizações não negras da sociedade civil brasileira, até pouco tempo atrás, buscavam minorar as condições adversas da vida dos que necessitavam comer, ter uma roupa, um abrigo, e também ter um conforto espiritual, restringiam-se ao assistencialismo e manutenção do status quo dos beneficiados. Não por acaso a relação entre população negra e filantropia mainstreaming ocupa um espaço caracterizado por múltiplos e diferenciados níveis de complexidade, uma vez que coexiste com o racismo estrutural. No início da década de 90, organizações de mulheres negras brasileiras estabeleceram parcerias com fundações filantrópicas internacionais que atuavam no campo da igualdade de gênero financiando ações focadas no reconhecimento e garantia dos direitos humanos das mulheres.
Os anos 2000 instalam novos cenários para a filantropia nacional, neste período constituem-se os primeiros fundos filantrópicos para justiça social. E ao final da primeira década ganhar força um novo jeito de fazer filantropia caracterizado pelo repasse voluntário de recursos privados de forma planejada, monitorada e sistemática, para projetos sociais, ambientais e culturais de interesse público. Este conceito intitulado investimento social privado, incorpora uma estratégia voltada para resultados sustentáveis de impacto e transformação social e prima pelo envolvimento da comunidade no desenvolvimento da ação. Os doadores se veem e são vistos, como investidores, não em sentido econômico, mas social: a sociedade deve mudar e lucrar em termos de benefícios. Em paralelo, no cenário internacional, deflagra-se um processo de avaliação do impacto da filantropia para amenizar e erradicar os efeitos das desigualdades sociais e conclui- 2 se que, embora muitas mudanças tenham sido alcançadas, havia grupos que, de modo sistemático, seguiam destituídos de poder e oportunidades reais para desenvolver seu pleno potencial em função de sua origem étnica, racial ou cultural. Na liderança deste movimento esteve a Fundação Kellogg que, no Brasil, após diferentes processos de escuta ativa de lideranças do movimento negro brasileiro e pesquisadores, se comprometeu em apoiar a criação do primeiro fundo dedicado exclusivamente à promoção da equidade racial para a população negra no Brasil, cujo patrimônio próprio, quando constituído, fosse o maior fora dos Estados Unidos.
O Fundo Baobá nasce para captar recursos e investir no fortalecimento de pessoas e organizações negras, focadas na promoção da equidade racial, bem como, constituir seu endowment, alimentado pelo match fund. Atualmente a WKKF aporta 3 vezes o valor captado no Brasil e duas vezes o valor capitado em outro país. De 2014 a 2019, o Fundo Baobá já investiu cerca de 10,2 milhões de reais em iniciativas e impactou cerca de 100 mil vidas em todo o território nacional. Nos últimos anos o setor privado, têm investido na promoção da diversidade mas não necessariamente contribuído para a promoção da equidade. Neste sentido, construir a cultura de doação para a causa de equidade racial no Brasil é um desafio assumido pelo Fundo Baobá que irá incidir no ecossistema da filantropia buscando mobilizar e engajar diferentes atores dispostos a reduzir os efeitos das desigualdades e intervir nas causas buscando soluções e estratégias para alcançar equidade.
Bolsista da Fundação MacArthur no programa de formação de pesquisadores negras no Centro Brasileiro de Planejamento, CEBRAP.
Co-Autora: Selma Moreira – Diretora Executiva no Baobá – Fundo para Equidade Racial, primeiro e único fundo dedicado, exclusivamente, à promoção da equidade racial para a população negra no Brasil. Também atuou como Gerente de Responsabilidade Social do Instituto Walmart, Gerente de Sustentabilidade na Fundação Alphaville e Gerente de Projetos da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Fundação Getúlio Vargas (ITCP – FGV). É membra do Conselho Consultivo do Instituto Coca-Cola Brasil e da Assembleia Geral do Greenpeace Brasil. É formada em Administração de Empresas pela Fundação Instituto Tecnológico de Osasco, pós-graduada em Gestão Estratégica em Comunicação Organizacional e Relações Públicas, pela Escola de Comunicação e Artes da USP, tem MBA em Gestão e Empreendedorismo Social, pela FIA. Nos últimos anos, seu foco é aprofundar conhecimentos acadêmicos acerca da história da população negra.
* Originalmente publicado em: https://www.alliancemagazine.org/feature/philanthropy-yes-but-philanthropy-for-racial-equity/