Solidarity Foundation*
Por tempo demais, a interação entre financiadores e beneficiários ficou reduzida a pouco mais que uma troca transacional. O dinheiro flui para um lado, os resultados fluem para o outro e os cronogramas são traçados com uma rigidez inabalável. Esse modelo obsoleto está sendo cada vez mais questionado. As organizações de base comunitária (OBCs) e as ONGs do Sul estão pressionando por uma mudança de paradigma em direção a uma abordagem mais holística, que englobe o apoio não monetário e, principalmente, o financiamento flexível e irrestrito. (Alguns exemplos disso são o movimento #ShiftThePower e o Projeto RINGO).
Em uma época em que a sociedade civil está cada vez mais pressionada, as ONGs e as OBCs se encontram em uma situação crítica. São vários os desafios que enfrentam: retração do espaço cívico, regulamentações restritivas e um cenário de financiamento cada vez mais competitivo. No entanto, em meio a essas dificuldades, as fundações comunitárias e Organizações Não Governamentais Internacionais (ONGIs) identificaram áreas importantes em que intervenções estratégicas poderiam garantir um futuro sustentável para esses atores sociais essenciais. A questão é: esses esforços serão suficientes para mudar a situação ou a sociedade civil está travando uma batalha perdida?
Planejamento estratégico: clareza ou caos?
Para ONGs e OBCs, ter um plano estratégico não é apenas um exercício burocrático – é uma questão de sobrevivência. “Primeiramente, é preciso ter clareza sobre ‘quem’ é a organização, como ela está estruturada e por que ela é necessária”, ressaltou um financiador. A mensagem é clara: sem um roteiro coerente, as organizações são como navios sem leme, à deriva, sem rumo. Uma estratégia institucional bem elaborada não só ajuda as organizações a reavaliarem as suas metas e traçarem um caminho para o sucesso, mas também as torna mais atraentes para os financiadores. Afinal de contas, quem quer investir em um empreendimento que carece de uma visão clara? Essa falta de clareza estratégica pode levar à perda de oportunidades e à diminuição do impacto, o que torna essencial que os financiadores apoiem o desenvolvimento dessas estruturas essenciais.
Porém, a realidade é que muitas organizações estão ocupadas demais com as operações do dia a dia para dar um passo atrás e planejar. Além disso, os financiadores descartam a necessidade de apoiar esses processos. Eles querem organizações robustas e democráticas, mas as ONGIs internacionais não se mostram dispostas a reconhecer o compromisso financeiro e de tempo necessário para isso.
Estrutura e documentação de MEL: um mal necessário?
As estruturas de Monitoramento, Avaliação e Aprendizagem (MEL) há muito são um tema controvertido no mundo das ONGs. Por um lado, elas são vistas como ferramentas essenciais para medir impacto e promover melhorias. Por outro lado, podem ser onerosas, desviando recursos do trabalho de verdade. “Na verdade, eu realmente acredito na importância de apresentar relatórios”, afirmou o representante de uma ONG, ‘temos que saber qual é o impacto do nosso trabalho’. Porém, como equilibrar a necessidade de prestar contas com o risco de acabar enterrado em papelada? Especialmente se os dados colhidos não forem particularmente úteis e tenderem a fluir em apenas uma direção: dos coletivos de base para as ONGs e depois para os financiadores. As comunidades raramente têm acesso aos próprios dados e os titulares dos dados não são envolvidos na determinação dos dados que seriam úteis. Embora esses sistemas ajudem as organizações a entender o que está funcionando e o que não está, a verdadeira questão é: essas estruturas podem ser projetadas para não sufocar a inovação e a capacidade de resposta?
“As comunidades raramente têm acesso aos próprios dados e os titulares dos dados não são envolvidos na determinação dos dados que seriam úteis.”
Desenvolvimento de capacidades internas: a infraestrutura invisível
Muitas ONGs e OBCs priorizam a entrega de projetos em detrimento do fortalecimento de sua infraestrutura interna. Isso geralmente se deve a uma limitação de tempo e recursos, com prazos e metas apertados que definem o seu foco, ou porque o desenvolvimento interno é visto como um luxo. No entanto, como observou um beneficiário, “a contabilidade financeira, a captação de recursos e a produção de relatórios representam desafios” para eles. A realidade é que, sem sistemas internos sólidos, as organizações ficam comprometidas. É nesse ponto que o financiamento flexível se torna essencial. Diferentemente dos subsídios específicos destinados a projetos, o financiamento básico permite que as organizações invistam em capacidades internas essenciais, como gestão financeira e recursos humanos. Essa é uma tábua de salvação que pode determinar se uma organização vai prosperar ou apenas sobreviver. Apesar da sua importância, garantir esse financiamento continua a ser um grande desafio, principalmente para as organizações menores.
“Os recursos básicos nos permitem visualizar o futuro com mais clareza e proteger nosso presente de forma mais eficiente.”
Além do financiamento flexível, os beneficiários também ressaltaram o valor da facilitação de oportunidades. Um deles observou que: “Nosso financiador nos apresentou a uma organização especializada em métodos participativos, e isso tem se mostrado extremamente valioso.” A comunidade filantrópica tem o potencial de se mobilizar e fornecer os recursos necessários para a construção dessa infraestrutura muitas vezes invisível. É de seu interesse apoiar o desenvolvimento de organizações fortes e resilientes. As organizações também precisam de tempo e espaço para refletir, se renovar e vislumbrar seu futuro. Isso exige uma mudança de entendimento entre os financiadores. Como disse um beneficiário, “Os recursos básicos nos permitem visualizar o futuro com mais clareza e proteger nosso presente de forma mais eficiente”. A liberdade de distribuir recursos conforme a necessidade pode resultar em soluções mais inovadoras e impactantes. Porém, com essa liberdade vem a responsabilidade de manter uma comunicação clara e transparente. Deve existir um processo para facilitar o diálogo contínuo entre financiadores e beneficiários.
Simplificação de processos: reduzindo a burocracia
Os desafios burocráticos que as organizações precisam superar para garantir e manter o financiamento podem ser penosos. Cientes disso, alguns financiadores vêm se esforçando para simplificar os processos de requisição e as obrigações de apresentação de relatórios. “Também estamos tentando assumir parte do ônus, em vez de repassá-lo todo aos nossos beneficiários”, observou o líder de uma ONGI. Outro financiador explicou que aceita o envio de relatórios em outros idiomas além do inglês, enquanto outro falou sobre a adoção de relatórios curtos e reflexivos que incentivem os beneficiários a pensar de forma crítica em vez de apresentar respostas padronizadas. Ao reduzir complexidades desnecessárias, os financiadores tornam mais fácil para as organizações se concentrarem nas suas missões principais. Entretanto, a simplificação deve ser feita com cuidado, para garantir que as informações essenciais não se percam. Achar o equilíbrio ideal entre a facilidade do processo e a responsabilidade nem sempre é fácil, mas é fundamental.
Oportunidades de colaboração: uma força coletiva
A noção de que “os doadores não conversam entre si” ressalta uma ineficiência importante do ecossistema de financiamento. A falta de padronização dos procedimentos de requisição e modelos de relatórios não apenas consome um tempo valioso, mas também desvia a energia do trabalho transformador que as ONGs e as organizações comunitárias poderiam estar fazendo. Ao colaborar e harmonizar seus requisitos, os financiadores podem diminuir as redundâncias e facilitar a navegação das ONGs e das OBCs no cenário do financiamento. Além disso, os financiadores têm muito a aprender uns com os outros e podem adotar práticas mais eficientes e favoráveis aos financiados. Além disso, a incidência filantrópica pode ser fundamental para moldar as práticas de grantmaking e alinhar as prioridades dos financiadores com as necessidades reais das comunidades que eles se propõem a servir. A questão permanece: os financiadores adotarão essa abordagem colaborativa ou persistirá a situação de isolamento existente?
Construindo relacionamentos melhores: a escolha entre a confiança e o fracasso
No centro de qualquer parceria bem-sucedida está a confiança. No entanto, para muitas ONGs e OBCs, o relacionamento com os financiadores continua sendo demasiado transacional. Outro representante de OBC expressou essa frustração e apontou que “muitas vezes os financiadores agem como policiais e nós somos vistos como ladrões”. Os desequilíbrios de poder nessas relações levam geralmente a concessões de projetos de curto prazo com pouca flexibilidade, comprometendo a sustentabilidade de longo prazo das organizações. A construção da confiança requer conversas honestas, abertas e transparentes, que vão além da conformidade, a fim de alcançar o respeito genuíno. Ela depende de uma transferência de poder e da incitação do setor filantrópico, há muito enraizado na dinâmica do poder, a adotar modelos de parceria mais equitativos. Os ares de mudança estão soprando, mas eles precisam sacudir as estruturas mais enraizadas.
“A construção da confiança requer conversas honestas, abertas e transparentes, que vão além da conformidade, a fim de alcançar o respeito genuíno.”
O caminho adiante: um chamado à ação
O futuro da sociedade civil depende das ações que realizamos hoje. Adotando o planejamento estratégico, o financiamento flexível, processos simplificados, a reformulação das abordagens de medição e a colaboração autêntica, reforçamos a fundação das nossas ONGs e OBCs. Isso requer um esforço conjunto de todas as partes interessadas: financiadores, beneficiários e as comunidades que eles buscam servir. Os desafios são enormes, mas o potencial de mudança transformadora também é. Chegou a hora de a comunidade filantrópica ir além do mero apoio, para realmente capacitar, confiar e firmar parcerias com a sociedade civil. Somente assim poderemos ter a esperança de construir um futuro mais justo, equitativo e resiliente para todos.
*Esse texto integra uma série de quatro artigos, de autoria conjunta da equipe da Solidarity Foundation, na Índia, elaborados a partir de conclusões do estudo Recursos para os movimentos sociais: Como transferir o poder?, realizado em 2024.