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Giro decolonial na filantropia: entre o paradoxo e a urgência

Por Cássio Aoqui, Jéssica Gonçalves & Letícia Cardoso

“Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça seguirão glorificando o caçador.”

Esse provérbio africano, já citado por intelectuais como Emir Sader e Eduardo Galeano, expressa bem o cerne de por que é importante refletirmos – e agirmos – no sentido de promover um giro decolonial na filantropia.

Aliás, falar em filantropia pós-colonial ou decolonial [1] na realidade brasileira é um contrassenso em si. Isso porque, a filantropia já nasce aqui como fruto de um projeto colonial, ou seja, ela surge da perspectiva do colonizador e das missões religiosas dedicadas à caridade e vinculadas a valores cristãos de misericórdia, compaixão e amor ao próximo [2]. Não à toa, o próprio termo filantropia vem do grego “amor à humanidade”.

Nas entrelinhas dessas origens coloniais, sobrevém a premissa de superioridade moral embasada na religiosidade, havendo, de um lado, a classe dominante como poder civil e, de outro, o beneficiário ou pedinte, pertencente às classes subalternas [3].

Aliás, numa visão mais sistêmica, a própria definição de “humanidade” apresenta um lugar intrinsecamente colonial. Como afirma Ailton Krenak, os esforços empreendidos para resguardar a humanidade foram um exercício alinear sobre a diversidade de pessoas, línguas e culturas existentes, agrupando-as em um lugar superior e separado da natureza, para sobrepor em relação a toda essa pluralidade de existência, “mesmo modelo e progresso que somos incentivados a entender como bem-estar” [4].

Se a noção de filantropia vai migrando do viés religioso para o laico ao longo dos séculos 19 e sobretudo 20, não se pode dizer que a dicotomia colonizador/colonizado é superada em tal processo. A chamada “profissionalização” da filantropia, sobretudo a partir dos anos 1990, e a adoção de conceitos e modelos como “investimento social privado” e “venture philanthropy” (filantropia de risco) são evidências do que muitos filantropos passam a ver como “evolução” e que, a nosso ver, espelham o espírito dos tempos neste século 21 em termos de discursos e narrativas – não sem incongruências e disputas internas entre os mais diversos agentes da sociedade civil [5].

Independentemente das premissas e paradigmas que embasam as diferentes correntes da filantropia, não se pode negar sua relevância – e a de todos os seus atores –, ainda mais no contexto político-econômico e sanitário atual [6]. E é nesse sentido que defendemos a urgência de promovermos um giro decolonial na forma com que praticamos filantropia, que traz no bojo de suas práticas, lógicas e formas de pensar resquícios de sua gênese colonial, entre os quais o legado da escravidão e as profundas desigualdades sociais que nos afrontam cada vez mais desde então.

Vale recordar que as noções de pós-colonialismo não são nenhuma novidade recente. Conceitualmente, o argumento pós-colonial tem suas primeiras elaborações no século 19 na América Latina; inspira-se posteriormente nas produções e ações de resistência dos martinicanos Franz Fanon e Aimé Césaire e do tunisiano Albert Memmi no início do século 20; e ganha força a partir das décadas de 1970 e 80, com o Grupo de Estudos Subalternos – com pensadores como os indianos Ranajit Guha e Gayatri Spivak.

O pós-colonialismo surge assim a partir da identificação de uma relação antagônica por excelência, ou seja, a do colonizado e a do colonizador, sendo que o termo “colonial” alude a situações de opressão diversas, definidas a partir de fronteiras de gênero, étnicas ou raciais – e, em nossa visão, territoriais. O conceito compartilha, em meio às suas diferentes perspectivas, do descentramento das narrativas e dos sujeitos contemporâneos [7].

Já a noção de giro decolonial emerge mais recentemente, em 2005, cunhado pelo porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres. Significa basicamente o movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico/do conhecimento, à lógica da colonialidade. Neste ponto, faz-se essencial destacar o conceito de colonialidade do poder, publicado pelo peruano Aníbal Quijano em 1989, a partir da constatação de que as relações de colonialidade nas esferas econômica e política não acabaram com o fim do colonialismo. A colonialidade se reproduz em uma tripla dimensão: a do saber, a do ser e a do poder, essa última representada pelo controle da economia, da autoridade, da natureza e dos recursos naturais, do gênero e da sexualidade e da subjetividade e do conhecimento.

Assim, quando transpomos tais conceitos advogando por um giro decolonial na filantropia, por mais paradoxal que possa ser, estamos falando de (começar a) promover essencialmente e ativamente uma filantropia antirracista, feminista, antipatriarcal, não heteronormativa e realmente inclusiva por parte de todos os envolvidos. Mais ainda, uma filantropia que combata o racismo epistêmico [8] e valorize os conhecimentos e saberes do Sul Global. Também uma filantropia de pensamento fronteiriço, no sentido de afirmar o espaço de onde o pensamento foi negado pela modernidade colonial, de esquerda ou de direita. Ou seja, olhar com novas lentes e abordagens colocadas sobre velhos problemas latino-americanos e, sobretudo, brasileiros, por mais provocativo e desconfortável que esse processo possa parecer e ser.

Na prática, é preciso problematizar e incidir sobre questões estruturais como “de onde partem as ações filantrópicas?”, “como se dá sua governança?”, “quem tem o poder de decisão?”, “como e em quais bases o conhecimento é (re)criado e compartilhado?”, “estamos mesmo caminhando no sentido da descolonização do poder, do saber e do ser, em uma visão mais sistêmica das iniciativas filantrópicas? [9]“.

Por fim, considerando a América Latina como o continente fundacional do colonialismo e o primeiro laboratório de teste para o racismo a serviço dele, temos a oportunidade única de desenvolver uma filantropia essencialmente latino-americana – e brasileira –, que faça contraponto a essa história. Após mais de 500 anos de uma filantropia tipicamente colonial, é mais do que hora de reolhar para as estruturas sem receio de transformá-las radicalmente, buscando novas possibilidades (que já emergem por todos os cantos deste país [10]), nem que partindo de novos horizontes utópicos. É hora de cocriar “novas” histórias, de alumiar “novos” historiadores e de construir novas narrativas num mundo que ainda glorifica seus caçadores de leões.

Notas: [1] Podem existir diferenças conceituais entre pós-colonial, descolonial e decolonial a depender dos autores e intelectuais envolvidos; porém, a título de simplificação, não entraremos em detalhes teóricos neste post. Para mais aprofundamentos, recomendamos fortemente a leitura de um dos textos-base aqui utilizados: Ballestrin, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 11, pp. 89-117. Brasília: maio-agosto de 2013. Os autores deste post estão conduzindo um ensaio mais profundo sobre a mesma temática, o qual será amplamente compartilhado assim que for publicado. [2] Dizemos por exemplo que a primeira instituição assistencial em nossa história pós-colonização foi a Santa Casa de Misericórdia de Santos, inaugurada em 1543, e mantida ao longo dos séculos com donativos de famílias ricas proprietárias de terras. [3] Mendonça, Patrícia; Aoqui, Cássio; Cardoso, Leticia. Philanthropy and Covid-19 in urban peripheries. EADI ISS Conference. The Hague: 2021. [no prelo] [4] Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2ª ed. São Paulo. Companhia das Letras, 2020. [5] Dessas relações e disputas, emergem outros paradigmas na filantropia, como a comunitária e voltada para a justiça social, tão bem alicerçada no Brasil por esta Rede para a qual escrevemos este post. Ou, como defende Boaventura de Sousa Santos, uma filantropia baseada em solidariedade, voluntariado e reciprocidade. [6] Evidências disso podem ser encontradas na série de publicações Estudos Emergência Covid, do GIFE, com análises da relevância da filantropia e do investimento social durante a pandemia em 2020 no Brasil. [7] Ver Ballestrin, Luciana (Op. cit.). [8] Que também se expressa na linguagem acadêmica, erudita e/ou não inclusiva. Nós, autores deste texto, reconhecemos as nossas próprias limitações nesse sentido e nos provocamos a redigir o próximo ensaio nesta temática aproximando a escrita da nossa oralidade, assim como nos inspirando na concepção de linguagem defendida por Lelia Gonzalez, o “pretuguês”, bem como na escrevivência de Conceição Evaristo, por exemplo. [9] Para conhecer exemplos práticos de iniciativas e modelos filantrópicos que caminham no sentido de um giro decolonial, recomendamos a leitura de Hopstein, Graciela; Peres, Milena. (2021). O papel e o protagonismo da sociedade civil no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil. ). Série Estudos Emergência Covid. GIFE (Grupo de Estudos, Fundações e Empresas). São Paulo; e Aoqui, Cássio; dos Santos, Diana Mendes. (2019). Novas narrativas para o investimento social e acesso a recursos nas periferias. Sinapse GIFE. [10] Ver sugestões de referências na nota 9.

 
Cássio Aoqui – diretor-executivo da ponteAponte, consultoria especializada em qualificar o investimento social e a filantropia com atuação em todo o Brasil e no México, e doutorando em Mudança Social e Participação Política (EACH-USP). Sou mestre e bacharel em Administração (FEA-USP) e atuo como professor na pós em Gestão Estratégica em Sustentabilidade (FIA), além de ser conselheiro, mentor e voluntário em diversas organizações (como o Potências Periféricas e a Sempre FEA). Trabalhei como jornalista na Folha de S.Paulo por mais de dez anos. Não menos importante, sou paulistano da Casa Verde (ZN), casado com o Mateus, pai da Nina (de três patas) e atualmente grávido (em processo de adoção).

Jéssica Gonçalves – coordenadora de Projetos na ponteAponte, graduada em Comunicação e Multimeios (PUC-SP) e pós-graduanda em Gestão de Projetos Sociais em Organizações do Terceiro Setor pela mesma instituição. Transito entre a fotografia e produção de projetos com foco na valorização da cultura afrodiaspórica e o empoderamento da mulher negra. Apoio o projeto Girassol Podcast, que oferece um espaço de diálogo por meio de trocas de experiências e vivências sobre diversos processos da vida. Acredito que por meio do meu trabalho posso colaborar com a transformação social do país.

Letícia Cardoso – assistente de Projetos na ponteAponte e graduada em Gestão de Políticas Públicas (EACH-USP). Sou mentora da Rede Potências Periféricas, feminista interseccional, periférica e motivada pela redução de toda e qualquer expressão de discriminação e desigualdade social. Também gosto de aprender a cozinhar alimentos nutritivos e gostosos, me alegrar numa roda de samba e criar passos imaginários.

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