Seja muito bem-vinda/e/o à Rede Comuá!

Medindo o que importa, um pemakna de cada vez

Medindo o que importa, um pemakna de cada vez

Foto: Pexels

Por: Kamala Chandrakirana

A Indonesia for Humanity (IKa) foi criada para apoiar os movimentos pró-democracia e os sobreviventes de violações aos direitos humanos. A organização foi criada por ativistas para apoiar outros ativistas com pequenos subsídios. Desde meados da década de 1990 até o início da década de 2000, dependíamos principalmente dos doadores. Mas quando a Indonésia começou a se democratizar, muitas agências doadoras que nos tinham financiado começaram também a abrir seus próprios escritórios na Indonésia e a IKa perdeu grande parte do seu financiamento. Em 2010, iniciamos uma nova jornada, fazendo experiências com a angariação local de fundos e a mobilização de recursos locais. Com o tempo, aprendemos que dinheiro não é o único recurso; diversos elementos intangíveis, como as redes que contribuíram para a evolução da IKa, também são recursos.

Quando iniciamos esse novo percurso, não queríamos reproduzir a relação hierárquica que normalmente existe entre doadores e beneficiários. Uma das primeiras coisas que consideramos foi a natureza das nossas relações com o nosso ecossistema de parceiros e as pessoas que recebem nossos recursos. Vimo-nos como parte de uma comunidade de facilitadores num círculo de múltiplos atores que desempenham papéis diferentes, mas posicionados como iguais. Também achamos necessário redefinir a forma como medimos o sucesso e explorar uma abordagem diferente à medição.

Por que procurar uma abordagem diferente para a medição? Estávamos insatisfeitos com o sistema atual, que é extrativo e limitador em termos da compreensão da complexidade do nosso trabalho. Além disso, era financeiramente inviável para nós: há toda uma indústria de monitoração e avaliação que adota um padrão de pagamento que nós nunca conseguiríamos alcançar. Mas também não queríamos simplesmente uma versão mais barata do modelo convencional. Precisávamos desenvolver um novo paradigma. Quando convidamos nossos parceiros para participar de uma forma diferente de medição, muitos abraçaram a ideia e compartilharam o quão traumático o modelo convencional havia sido para eles. Tudo isso num momento em que nós, a comunidade de ativistas e movimentos da Indonésia, passávamos por um período de reflexão, ao ver o país retroceder em termos de democracia e direitos humanos.

“Quando iniciamos o novo percurso, não queríamos reproduzir a relação hierárquica que normalmente existe entre doadores e beneficiários.”

Naquele momento, em 2018, quando começávamos a ter essas conversas, já tinham se passado 20 anos desde o movimento reformista da Indonésia que pôs fim ao regime autoritário em 1998. Mas em 2018, as práticas autoritárias começaram a ressurgir. O discurso político nas bases mostrou que uma força grande e dominante tomara conta da imaginação das massas, especificamente da extrema direita religiosa. Tínhamos levantado algumas questões muito específicas – como, por exemplo, qual tinha sido a nossa eficácia enquanto movimento? Isso porque as coisas pioraram depois de 20 anos de trabalho tão duro. Naquele momento de reflexão, propusemos discussões com os líderes do movimento para tentar entender a nossa eficácia, para refletir e aprender com a jornada, e compreender a importância que teria essa prática para a sustentabilidade do próprio movimento.

Além disso, lemos vários documentos, incluindo uma reflexão de Robert Chambers intitulada Can We Know Better? (Podemos Ser Mais Sábios?) Ele escreveu: “para tornar real a nossa retórica, precisamos clamar por uma revolução no conhecimento, no pensamento e na prática do desenvolvimento em todos os lugares, temos que transformar a forma como vemos as coisas, como nos comportamos, como interagimos, aprendemos e sabemos, e o que fazemos”. Sentimo-nos representados pela convicção de Robert Chambers de que o conhecimento não é singular e existem diversos conhecimentos. Lemos também Measuring What Matters (Medindo o que Importa), de Dana R. H. Doan e Barry Knight, que remete o trabalho de Richard Tarnas, Cosmos and Psyche: Intimations of a New World View (Cosmos e Psique: Insinuações de uma Nova Visão de Mundo): “para entender melhor a vida e o cosmos, talvez tenhamos que transformar não apenas as nossas mentes, mas também os nossos corações. Isso porque o ser como um todo, corpo e alma, mente e espírito, estão envolvidos. Talvez tenhamos que ir não apenas para o alto e avante, mas também para dentro e fundo”.

A partir daí, embarcamos em um processo que não consistia apenas de revisar, avaliar ou medir nosso trabalho, mas também de construir conhecimento sobre nós mesmos enquanto movimento social. Analisamos os quatro critérios de sucesso para um sistema de medição alternativo em Medindo o que Importa: “Deve ser útil e utilizado. Deve ser facilmente adaptável a diferentes contextos e interesses; deve trazer inspiração em vez de padronização. Deve ser confiável e capacitar as pessoas e comunidades que queremos servir”. Além disso, tinha que ser acessível para uma organização pequena como a nossa, que quer continuar pequena e não se tornar uma grande organização.

“O que estamos fazendo enquanto fundo é viabilizar os passos intermediários para uma mudança que possivelmente só virá depois de uma geração inteira – talvez 25 anos – pois é assim que acontece a transformação de verdade.”

Então, qual é a abordagem que buscamos e qual a sua diferença? Primeiro, havia uma questão de linguagem. Não queríamos usar o termo “monitoramento e avaliação”. Em vez disso, criamos um novo vocabulário que deriva da palavra “makna”, que significa significado. A essa palavra acrescentamos o prefixo “pe” e o sufixo “an”, tornando-a “pemaknaan”, que significa o ato de atribuir significado. A partir disso, criamos uma nova palavra que é “Pemakna”, que significa o indivíduo que realiza a atribuição de significado. Tudo isso baseou-se na gramática indonésia.

O Pemakna é reconhecido como parte da nossa comunidade de facilitadores. Definimos o processo de pemaknaan como “um processo baseado no diálogo que constrói uma compreensão contextual, propicia reconhecimento afirmativo e envolve observações crítico-construtivas relacionadas aos esforços iniciados por organizações parceiras e as suas respectivas comunidades”. Esse processo pretende fortalecer, de forma reflexiva e estratégica, as chances que os movimentos sociais têm de alcançar mudanças transformadoras.

O que medimos é a capacidade transformadora dos nossos parceiros e suas iniciativas. Na nossa visão, capacidade transformadora significa ter a intenção, a estratégia e a capacidade de tomar medidas preliminares ou intermediárias para alcançar a mudança transformadora. Embora sejamos uma organização pequena que concede pequenos financiamentos a organizações de base, também pequenas, a nossa pauta e propósito são gigantes: promover a transformação social. Queríamos encontrar uma forma de dizer com segurança que recursos modestos para pequenas iniciativas podem contribuir para mudanças transformadoras, se houver intenção, estratégia e capacidade. O que estamos fazendo enquanto fundo é viabilizar os passos intermediários para uma mudança que possivelmente só virá depois de uma geração inteira – talvez 25 anos – pois é assim que acontece a transformação de verdade.

Um dos princípios do nosso método é celebrar a subjetividade. Isso contrasta com o objetivo predominante de medir objetivamente. Trazemos pensadores-ativistas experientes que contribuem experiências ricas, profundas e por vezes até mesmo dolorosas da luta por mudanças transformadoras em circunstâncias difíceis. Acreditamos que esse contexto contribuirá positivamente para dar sentido às iniciativas comunitárias que apoiamos. Queremos que o nosso processo abra espaços coletivos para aprendizagem compartilhada, envolvendo uma abordagem relacional baseada na confiança e na atenção plena. Tudo isso deve ser feito com base na ética do cuidado.

“Um dos princípios do nosso método é celebrar a subjetividade.”

O outro elemento distintivo do nosso modelo é a representatividade. Quem está realizando o ato de atribuir sentido? Não queríamos chamá-los de avaliadores. Nós os chamávamos de pemakna – um observador-mentor qualificado, com boa compreensão das dinâmicas sociais, políticas e econômicas da sociedade, que defende a justiça, os direitos humanos e a sustentabilidade ecológica. Essa pessoa também deve se mostrar disposta a atuar com independência e espírito de solidariedade. Procuramos pessoas que se encontram dentro do movimento, mas que ainda sejam capazes de agir e analisar com independência. Também procuramos pessoas que trabalhem por solidariedade, pois não pagamos bem por isso. Pagamos ao pemakna o equivalente ao salário mensal de um motorista de ônibus. Os pemakna devem ser atuantes na sua comunidade, devem ter conhecimentos individuais e interesse em contribuir para a construção do conhecimento na busca da transformação social. Quando convidamos pessoas para atuar como pemakna, não pedimos que nos ajudem a analisar nossas doações. O que lhes propomos é: “Quer se juntar a nós na construção de conhecimento do zero sobre o trabalho de transformação social?”

A abordagem pemaknaan fundamenta-se na subjetividade do pemakna, que traz um determinado ponto de vista e uma compreensão específica, relevante para fortalecer o trabalho dos movimentos em vista da transformação social.

O primeiro passo é procurar parceiros locais interessados nesse exercício de construção de conhecimento. E aí trabalhamos com eles para entender as suas necessidades de aprendizagem. Perguntamos que tipo de aprendizagem necessitam, e em seguida, perguntamos: se fôssemos buscar um pemakna para atender às suas necessidades, que tipo de critério gostariam que considerássemos? Com base nisso, identificamos os candidatos e perguntamos se estão dispostos a atuar como pemakna. Fazemos uma sessão de orientação para apresentar o modelo – pois é relativamente novo. Depois disso, cada pemakna interage diretamente com os parceiros locais específicos. Além disso, realizamos sessões de aprendizagem cruzada entre os pemakna para que eles também possam aprender uns com os outros. Depois de fazerem suas anotações, reunimos todos para compartilhar o que aprenderam e discutir opções para avançar. Todo o processo é auxiliado por um facilitador de aprendizagem. Os pemakna que selecionamos tendem a ser pessoas reflexivas, que gostam de escrever e têm muitos anos de experiência. Estamos bem posicionados para encontrar essas pessoas porque o IKa faz parte do ecossistema dos movimentos sociais. Não chamamos seus textos de relatórios, mas sim de notas, indicando que se trata de conversas em andamento, sem aquele sentido de finalidade que a palavra “relatório” tende a transmitir.

“Não chamamos seus textos de relatórios, mas sim de notas, indicando que se trata de conversas em andamento, sem aquele sentido de finalidade que a palavra ‘relatório’ tende a transmitir.”

Para celebrar e localizar a subjetividade de cada pemakna, pedimos que escrevam um pouco sobre quem são e qual a sua relevância para a missão das organizações locais com que vão trabalhar. Pedimos então que discorram sobre o seu entendimento do campo e a dinâmica das operações dos nossos parceiros locais. Pedimos também que compartilhem conosco as suas observações sobre o processo de diálogo com os parceiros. A partir daí eles apresentam algumas conclusões sobre as suas impressões da capacidade transformadora dos parceiros.

Nosso trabalho visa ao aprendizado no longo prazo, considerando que, com o tempo, construiremos novos conhecimentos e insights do zero. A abordagem pemakna foi concebida como uma alternativa aos modelos convencionais de monitoração, avaliação e aprendizagem (MAA), historicamente concebidos pelos doadores, e é aplicada como uma complementação (e não em substituição) dos mesmos. Para nós, reconhecer a multiplicidade e a diversidade de propósitos é crucial para medir as realidades complexas da transformação social.



Kamala Chandrakirana é membro do Conselho Executivo da organização Indonesia for Humanity (IKa).

Originalmente publicado em: https://shiftthepower.org/2022/11/28/measuring-what-matters-one-pemakna-at-a-time/

CONTINUE LENDO

Rede Comuá participa da COP29 e do G20 Social, incidindo na agenda de financiamento para soluções locais
Rede Comuá participa da COP...
10 de dezembro de 2024
Filantropia Comunitária e Justiça Social para o Bem Viver de Idosos em Situação de Fragilidade: Um Relato de Caso em Crucilândia, MG
Filantropia Comunitária e J...
3 de dezembro de 2024
Além da confiança: como a filantropia deve avançar em direção a um financiamento mais flexível para maximizar o impacto
Além da confiança: como a f...
3 de dezembro de 2024
Comuá Network Launches Publication on Social Movements and Philanthropy in Brazil
Comuá Network Launches Publ...
22 de novembro de 2024
Carregando mais matérias....Aguarde!