O Seminário Filantropia, Justiça Social, Sociedade Civil e Democracia, da Rede Comuá, evidenciou o papel central que mulheres negras devem exercer nos debates sobre descolonização e reconceituação do campo da filantropia no Brasil.
Por Andreia Simplicio
A lógica da colonização e da hierarquização dos corpos criou ferramentas de disparidade racial que são baseadas na colonialidade e se mantém através da dinâmica de poder nas relações sociais. Estas subsidiam o comportamento e o imaginário social que alimentam e reproduzem violências raciais no cotidiano. A lógica de subalternização impacta também naquilo que compete à estrutura das organizações de base e no formato em que se incluem no ecossistema filantrópico, cultura de doação e cenário político.
O processo de reconceituação filantrópico, que inclui considerar o formato da cultura de doação, tem se fortalecido no campo da produção teórica, a favor da promoção dos direitos humanos. Considerando os processos epistemicidas e a valorização do saber e das práticas que exercem os povos tradicionais, vistos como centrais para o debate. Enquanto a filantropia se afasta da origem de benevolência, a cultura de doação conserva esse caráter conservador, através de características que precisam ser revistas para dar sentido ao significado social de sujeitos de direitos.
O Seminário Filantropia, Justiça Social, Sociedade Civil e Democracia da Rede Comuá trouxe perspectivas que discutem um processo de reconceituação do campo da filantropia no Brasil, sendo central a discussão da descolonização, tensionando as nuances que nos fazem questionar a estruturas sociais e como elas impactam também no formato da distribuição dos recursos.
Os povos tradicionais devem ser considerados como detentores de conhecimento filantrópico, pois as populações que são vulnerabilizadas ao longo da história também são responsáveis pelo protagonismo nos processos de avanços sociais. Estas desempenham papéis fundamentais no avanço da democracia, através de sua atuação territorial e seu conhecimento de mobilização social.
Neste artigo dá-se ênfase às mulheres negras, que somam mais de 28% da população e representam o maior grupo demográfico do país (PNAD, 2019). Em detrimento disto, as mulheres negras protagonizam os indicadores sociais mais baixos, como o acesso e qualidade dos direitos. São também o grupo mais impactado pelos avanços neoliberais e conservadores da atual conjuntura social, bem como, os impactos econômicos, sociais e políticos da pandemia de Covid-19.
A pandemia da Covid-19 mobilizou muitas pessoas que doaram dinheiro, bens e tempo para fortalecer o enfrentamento da crise sanitária e combater seus efeitos (IDIS, 2020). O surto da doença registra-se, historicamente, como um divisor de águas no que compete aos acirramentos das disparidades sociais, sobretudo às institucionalizações de política de morte. Além de provocar a cultura de doação, a solidariedade também se configurou na busca pelo enfrentamento de emergências sociais, como a fome. Durante o período mais duro da pandemia, as mulheres negras seguem à frente das respostas à questão social.
Segundo a pesquisa Ativismo e Pandemia, “a histórica atuação política das mulheres negras no Brasil se revela na predominância de 73,2% nas organizações e nos grupos”. Influi-se que 56% dos movimentos de mulheres e LBTIs no Brasil são informais; 73,6% dos movimentos de mulheres e de pessoas trans sediam seus ativismos em suas residências, em espaços alugados ou em imóveis emprestados, e 54% contaram com até R$ 20.900,00 para suas atividades ao longo do ano (ELAS+, 2021).
A Pesquisa, realizada com 953 organizações lideradas pro mulheres cis e trans de todo o Brasil, identificou o impacto da Covid19 no território/comunidade, a forma como as organizações foram afetadas e como os grupos estão superando as dificuldades da pandemia.
“Segundo a pesquisa, as comunidades foram afetadas, principalmente, nas seguintes categorias: acesso a ferramentas e a tecnologias digitais; acesso a informações sobre Covid-19; vulnerabilidades sociais frente ao contexto de pandemia; aumento das violências; adoecimento mental; insegurança alimentar; trabalho, emprego e renda; mobilidade; justiça socioambiental “(ELAS+, 2021).
“As organizações foram afetadas em sua infraestrutura, na implementação de suas atividades e em sua atuação e em suas equipes. Destacam-se as categorias de impactos: acesso a ferramentas e tecnologias digitais; saúde mental das integrantes; vulnerabilidade das integrantes; trabalho, emprego e renda das integrantes; mobilização de recursos financeiros; aumento de demanda; desafio da presença não física nos territórios”(ELAS+, 2021).
“Para superar as consequências da pandemia da Covid-19, as organizações e os grupos foram proativos, atuaram na linha de frente, facilitaram a interlocução entre comunidade e Estado; ampliaram e fortaleceram redes; proporcionaram acolhimento e acompanhamento; executaram ações para a equidade digital; reinventaram seus ativismos” (ELAS+, 2021).
Aponta-se que, mediante um cenário pandêmico, as mulheres se mostraram criativas, investiram em sua qualificação técnica e política e promoveram ações de emergência social em suas comunidades. Construíram respostas para as disparidades sociais e o retrocesso nos direitos sociais através da organização coletiva. A potência de transformação do investimento nas organizações lideradas por essas mulheres, sejam elas cis ou trans, se inscreve na história como uma inversão de valores que subvalorizam a existência do ser negra e do ser mulher.
Como disse Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela” – e esta afirmação é uma referência concreta pois, sabemos que são estas que chefiam famílias, lideram comunidades e organizações. O fortalecimento do protagonismo das mulheres negras possui impacto estrutural. A potência de transformação social direcionada pela atuação dessas mulheres é ainda imensurável quantitativamente, mas possui poder de mobilizar estruturas de opressão, impactar trajetórias e são capazes de repercutir em sistemas políticos e políticas públicas no campo da filantropia e no imaginário sociocultural.
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Referências Bibliográficas:
Impacto de COVID 19 em organizações da sociedade civil lideradas por mulheres e pessoas trans no Brasil [livro eletronico]: ativismo e pandemia / ELAS+ Doar para Transformar; [coord: K.K. Verdade; Amália Fischer] Rio de Janeiro, 2021.
Pesquisa nacional por amostra de domicílios: PNAD: microdados. IBGE, 2019.
Pesquisa doação Brasil 2020 / [IDIS – Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social] ; coordenação Andréa Wolffenbüttel. — São Paulo : IDIS – Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social, 2021.
A participação nesta atividade foi viabilizada pelo Programa de Fortalecimento de Capacidades Profissionais, no âmbito do Programa de Apoio Estratégico da Rede Comuá, cujo objetivo é apoiar o desenvolvimento e fortalecimento das competências e capacidades profissionais dos quadros técnicos de organizações membro. Esta linha de apoio é concebida como estratégia voltada para a ampliação e aprofundamento de conhecimentos e para o fortalecimento de sua atuação nos campos da filantropia comunitária e de justiça social.
Andreia Lohane Resende Simplicio é Assistente Social e especialista em políticas, infância, juventude e diversidade formada pela Universidade de Brasília. Pesquisadora nas temáticas de saúde, gênero, racismo e juventude. Integra o observatório de saúde e direitos da juventude (UNFPA). Atuou como representante internacional da juventude afro da América Latina e Caribe (UJAFRO). Possui experiência em gestão de políticas públicas e diversidade na secretaria da mulher do distrito federal (SMDF), consultorias para projetos sociais, mobilização de recursos, mentoria e tutoria de juventude e adolescentes. Educadora lúdica, com atuação em metodologias ativas e participativas para a promoção de saúde e prevenção as violências. Atualmente desempenha a função de assistente de desenvolvimento e mobilização de recursos no fundo social ELAS+.