Foto: Inter-American Foundation
Rede Comuá e organizações membro estiveram presentes no encontro de organizações donatárias da Inter-American Foundation (IAF), em Olinda
Por Jonathas Azevedo
“Toda vez que eu dou um passo, o mundo muda de lugar.” Siba
Entre os dias 16 e 19 de outubro, a Rede Comuá participou do Encontro de Donatárias 2024 da Inter-American Foundation (IAF), realizado em Olinda, Pernambuco. Inicialmente previsto para 2020, o encontro foi adiado devido à pandemia da COVID-19. Em 2022, quando estávamos aos poucos voltando à (suposta) normalidade, um encontro online foi realizado. Foi somente em 2023, após três anos de espera, que um novo encontro presencial foi possível.
Em meio às ladeiras e à história de Olinda, mais de 70 pessoas de cerca de 30 organizações se reuniram durante quatro dias em torno de uma programação que englobava trocas, vivências, momentos de autocuidado, com toque de cirandas, poesias e atividades culturais. Com presença de pessoas do norte ao sul do país, o encontro congregou organizações de base comunitária, associações quilombolas e organizações doadoras independentes da filantropia em torno do propósito de facilitar vínculos, (re)estabelecer conexões e fomentar trocas e aprendizados. Apesar das diferenças entre organizações presentes, o encontro serviu, acima de tudo, para enfatizar o que nos une em nossas missões pela transformação social comprometida com a luta por direitos. Em outras palavras, mais do que um encontro de/para donatárias, espaços de reunião de organizações de base comunitária dos mais diferentes cantos do país é (e precisa ser), acima de tudo, um espaço político.
Ao longo do encontro, fomos convidados a olhar para nossas organizações também como organismos vivos, sujeitos a constantes mudanças e que vivem, resistem, apesar das circunstâncias adversas. Nas vivências (visitas que realizamos a organizações apoiadas pela IAF em Pernambuco), fomos apresentados a outros exemplos de organizações que “viviam e resistiam”. No meu caso, tive a oportunidade de visitar o Grupo Espaço Mulher, organização de mulheres negras da comunidade de Passarinho, apoiada pela Casa da Mulher do Nordeste e que realiza um conjunto de atividades de agroecologia, direitos das mulheres, valorização da ancestralidade e cultura negra, artesanato, arteterapia e, acima de tudo, de formação e organização política de mulheres negras. Além de promoverem iniciativas de articulação comunitária pelo acesso a políticas públicas no território, como a Ocupe Passarinho, as mulheres redigiram uma carta política, documento revisto anualmente e que reúne compromissos e aspirações políticas da comunidade. Vimos, assim, em primeira mão a materialização, através das ações do Grupo Espaço Mulher, da célebre frase da filósofa e ativista Angela Davis:
“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
A vivência no Grupo Espaço Mulher foi, então, bem mais do que uma visita. Foi experienciar a construção de um projeto político alternativo de país pautado verdadeiramente na potência dos territórios. E isso não é uma novidade em outros territórios e comunidades em diferentes partes do país, especialmente nas periferias. Há uma gama de organizações, coletivos e movimentos, liderados em sua maioria por populações historicamente marginalizadas (como mulheres, indígenas, quilombolas, entre outros grupos), que já possuem agendas claras para a transformação não só de seus bairros ou comunidades, mas de todo um país. A Agenda Rio 2030, iniciativa organizada pela Casa Fluminense, é um exemplo claro disso.
A reunião de grupos de base comunitária, como no encontro de donatários da IAF, assume ainda uma outra dimensão: um chamado à filantropia tradicional, mainstream e que se exime de apoiar a construção de agendas políticas e de defesa ao acesso a direitos. Os recados, então, ficam evidentes: é preciso apoiar organizações de base com recurso operacional, flexível e plurianual. É preciso fortalecer espaços de formação política e de lideranças. É preciso confiar no trabalho e nas capacidades das organizações. É preciso apoiar iniciativas de articulação e de incidência promovidas por elas em suas lutas pela defesa e conquista de direitos. É preciso promover espaços de escuta ativa com esses grupos, valorizando sua autonomia, conhecimentos e práticas ancestrais.
Após longos anos com nossos direitos sob constante ameaça por governos de extrema direita e autocráticos, foi o trabalho comunitário e de base, muitas vezes tocado por grupos minorizados, que construiu e fortaleceu as trincheiras da resistência. Como disse uma participante do encontro,
“contar a própria história fortalece os processos de mudanças”.
Por isso, a história dessas organizações precisa ser contada e celebrada. Que a filantropia não fuja mais desse chamado e dessa luta.
Jonathas Azevedo tem bacharelado em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense e especializou-se em Ajuda Humanitária e ao Desenvolvimento pela PUC-RIO. Em 2020, concluiu seu mestrado em Inovação Social e Empreendedorismo pela London School of Economics and Political Science. Jonathas atuou na gestão, monitoramento e avaliação de projetos e construção de parcerias no Brasil e Haiti. Tem experiência em projetos voltados a direitos humanos, articulação comunitária, redução de violência, entre outros temas. Atualmente, é assessor de programas na Rede Comuá e está membro do conselho administrativo da Médicos Sem Fronteiras Brasil.