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Para além do discurso: qual o compromisso real da filantropia com a transformação?

Para além do discurso: qual o compromisso real da filantropia com a transformação?

Foto: LAC Working Group

Em meio a um contexto de policrise, a transformação da filantropia é urgente e demanda compromissos reais de atores e atrizes do setor com movimentos e organizações da sociedade civil

Por Graciela Hopstein e Jonathas Azevedo

Entre os dias 3 e 5 de outubro, Nairobi, capital do Quênia, foi palco do primeiro WINGSForum pós-pandemia de COVID-19. Encontro global da rede de filantropia WINGS, o evento foi co-organizado pela African Philanthropy Network, também parceira da Rede Comuá no âmbito do Programa Doar para Transformar, e reuniu 350 pessoas de mais de 50 países sob o mote “transformar a filantropia para transformar o mundo”. 

Em meio à preparação ao evento, WINGS também capitaneou a Iniciativa de Transformação da Filantropia (Philanthropy Transformation Initiative, em inglês), “um esforço colaborativo para reunir princípios, materiais e histórias de todo o mundo e construir um movimento para transformar a filantropia para que ela possa atingir todo o seu potencial”. Além do sítio eletrônico, a iniciativa lançou um relatório e um conjunto de casos que exemplificam como já existem atores e atrizes filantrópicos promovendo a transformação. 

Assim, o tom da conferência estava dado e o chamado para a filantropia ficou evidente:

“O tema deste ano baseou-se na necessidade de nos transformarmos e nas nossas formas de trabalhar para enfrentar a escala, a complexidade e a urgência da policrise global – o conjunto de riscos globais interligados que representam uma ameaça para nós como humanidade. Como organizações filantrópicas, devemos transformar a nós mesmos, as nossas práticas e as nossas instituições. Para fazer isso, precisamos nos unir para aprender uns com os outros e compartilhar ideias, soluções e caminhos para a mudança.” (Tradução e grifos dos autores)

Nas plenárias, diferentes perspectivas sobre como essa transformação pode (ou deveriam) se dar foram debatidas. Dos cantos do povo suruí, proferidos pela coordenadora do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia e guerreira Txai Suruí, passando pelo poder da juventude no Japão, representada por Rena Kawasaki, da Earth Guardians Japan, na promoção de mudanças e da inovação, às fortunas de bilionários filantropos e até diplomatas, o WINGSForum trouxe visões diversas sobre o papel da filantropia em meio a mundo de policrise, mas deixou também evidente que o campo filantrópico tem um longo caminho a percorrer no que se refere mudanças de princípios, práticas e lógicas de poder que realmente estejam comprometidas com a transformação do setor. 

Certamente, WINGS deu um grande passo pautando a necessidade de conectar as práticas da filantropia aos processos de transformação, entretanto ficou evidente ao longo do encontro que as práticas e visões tradicionais e conservadoras continuam presentes e pautando o campo. Inclusive em alguns casos, essas formas de fazer filantropia se instalam como verdades universais, como práticas unívocas. 

É importante que esses espaços estejam preparados para travar debates profundos e inclusive uma “guerra de narrativas” absolutamente imprescindíveis nos tempos atuais que precisam de novos posicionamentos ético-políticos para poder enfrentar a profunda crise que estamos atravessando nos campos político e socioambiental. Não se trata de promover apenas discursos recheados de palavras de ordem, mas de colocar de forma pública debates e reflexões baseadas em práticas concretas, adquirindo dessa forma um caráter material, evitando cair em modismos ou em apropriação de agendas que sem sustentação no plano real terminam sendo completamente esvaziadas.  

A filantropia precisa dar espaço às filantropiaS (no plural) 

O Fórum buscou trazer novas agendas e vozes nas discussões através de debates em torno de temas como o poder, decolonização da filantropia, taxação de grandes fortunas, etc. Certamente a presença dessas agendas no Fórum devem ser entendidas  como uma conquista, como o resultado do trabalho de incidência que um conjunto de organizações e redes do Sul Global principalmente vêm fazendo para reconhecer problemas e desafios no campo, bem como também de outras e novas práticas filantrópicas. Se bem esse foi um passo significativo, ainda temos muito para desconstruir considerando que trata-se de um fórum (e de uma rede) que envolve prioritariamente organizações filantrópicas de grande porte (filantropia tradicional) e nem sempre muito abertas para reconhecer a chegada de novas agendas e atores, principalmente do Sul Global. De fato, não existe uma única filantropia, mas diversas filantropias, envolvendo diversas visões e pautas que ainda precisam ocupar um lugar central nos debates com as quais  certamente o Wings está comprometido, mas que ainda precisam ganhar espaço e reconhecimento.  

A filantropia não é a protagonista, mas apenas mais um ator na promoção das transformações

A transformação só vai acontecer com um comprometimento real de atores da filantropia com quem está na linha de frente e protagonizando essas transformações – os movimentos sociais, as organizações da sociedade civil, lideranças comunitárias e populações cujos direitos lhes são historicamente negados. Embora olhar para si e promover transformações de suas práticas e modos de fazer seja urgente e necessário, a filantropia precisa reconhecer seu lugar no apoio a processos de transformação promovidas por esses grupos sem co-optar, esvaziar ou até mesmo impor agendas. A luta desses atores e atrizes da sociedade civil é, acima de tudo, política e sua autonomia deve ser respeitada e garantida. 

A transformação já está acontecendo, mas onde estão os recursos?

Como mostram a já mencionada Philanthropy Transformation Initiative (PTI) e o Mapeamento de organizações doadoras da filantropia independente no Brasil, realizado pela Rede Comuá em parceria com a ponteAponte, as filantropias que transformam existem e resistem. No relatório da PTI, por exemplo, está o caso do projeto Traçando Caminhos para o Bem Viver, do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), membro da Rede Comuá, em parceria com a Associação Wirazu e Guerreiras da Floresta. Já no Mapeamento, temos um primeiro retrato do trabalho realizado por 31 organizações doadoras da filantropia independente. Durante o fórum, as falas de Txai Suruí e de Rena Kawasaki, mencionadas acima, também evidenciam outras práticas. 

Ao mesmo tempo em que tais exemplos representam futuros do que essa(s) filantropia(s) transformadora(s) pode(m) ser, reforçam também um chamado a olharmos para esses modos de fazer filantropia, como a representada pela filantropia independente no Brasil, que já existem e lutam pela garantia e defesa de direitos e que impulsionam transformações ao apoiar atores e atrizes da sociedade civil em suas lutas. 

No entanto, ainda permanece uma pergunta-chave: onde está o dinheiro para esses processos de transformação? No Brasil, o Censo GIFE 2020, por exemplo, denota o baixo volume de recursos destinados a pautas ligadas a luta de minorias políticas – apenas 5% das organizações filantrópicas associadas ao GIFE financiam diretamente iniciativas voltadas à questão racial; 9% às mulheres; 3% às comunidades LGBTIQA+ e 4% a pessoas com deficiência. Ou, como mostra a pesquisa da Iniciativa Pipa, em que organizações de periferias vivem com menos de R$5.000 por ano. A nível internacional, o relatório Onde está o dinheiro para movimentos feministas negros? (em tradução livre), organizado pelo Black Feminist Fund, também mostra que 53% das organizações lideradas por feministas negras não têm recursos suficientes para sobreviver ao próximo ano fiscal.

Quais, então, são os caminhos possíveis?

Para a Rede Comuá, falar de transformação na filantropia não é uma novidade, mas sim a realidade do trabalho que as organizações membro promovem nos campos da filantropia comunitária e de justiça socioambiental. Para a Rede, o apoio, através de doações (financeiras e não-financeiras) a organizações, movimentos, coletivos da sociedade civil em sua luta por acesso a direitos exerce um papel estratégico na transformação. Em outras palavras, o fortalecimento da sociedade civil e, consequentemente, da democracia sob a lente do acesso e garantia de direitos, é chave para impulsionar processos transformadores. 

A delegação brasileira no Wings Fórum

Um grupo significativo de representantes de organizações brasileiras que atuam no campo da filantropia e do ISP esteve presente em Nairobi: profissionais da equipe executiva da Rede Comuá e quatro organizações associadas – Tabôa, Fundo Baobá para Equidade Racial, Elas+ Doar para Transformar e Fundo Agbara – Iniciativa PIPA, GIFE, ABCR, IDIS e também de fundações familiares.

Certamente, a participação de organizações da filantropia foi significativa em termos de representação, o que indica que o Brasil conta com um ecossistema desenvolvido, diversificado e engajado com as agendas da filantropia. Entretanto, teria sido interessante que a delegação brasileira estivesse mais articulada e ativa na condução de sessões e debates para mostrar não apenas a sua relevância na região, mas também para dar visibilidade para algumas das agendas significativas e práticas no campo que poderiam servir de referência para a filantropia latino-americana.  

Reflexões finais: quais os caminhos trilhados e que precisamos fortalecer?

O Fórum deixa, finalmente, um recado sobre organização política. O encontro em Nairobi facilitou um espaço para fortalecer articulações globais de atores e atrizes do setor comprometidos com a transformação que embora não foram a maioria, são relevantes do ponto de vista do engajamento com essa agenda. Ao reunir pessoas e organizações comprometidas com movimentos como o #ShiftThePower, a aliança Doar para Transformar e outros representantes de organizações e movimentos da sociedade civil, a conferência foi um momento de estreitamento de vínculos, alinhamento de agendas e, acima de tudo, de organização. 

A Rede Comuá, por exemplo, junto com Kenya Community Development Foundation (KCDF) e Wilde Ganzen, também parceiras no Programa Doar para Transformar, promoveu uma sessão paralela chamada Transformative Philanthropy: Strengthening civil society when human rights are under attack (Filantropia transformadora: fortalecendo a sociedade civil quando direitos humanos estão sob ameaça, em tradução livre), em que se discutiu o papel da filantropia comunitária e de justiça social na promoção e defesa de direitos em contextos de crescente restrição do espaço cívico e ataques a populações marginalizadas. O Fórum permitiu ainda o primeiro encontro presencial, em mais de cinco anos, do Grupo de Trabalho de América Latina e Caribe, facilitado pelo WINGS. Assim como estas sessões, outros encontros e redes foram tecidas e fortalecidas durante o fórum, evidenciando que apenas a organização e colaboração, intencional e política, entre atores e atrizes é capaz de promover transformações reais. É preciso, assim, seguir garantindo a presença desses atores, em especial do Sul Global e que representam outras filantropias, nesses espaços de influência e poder, a fim de seguir ativamente tensionando as lógicas de poder e controle que ainda regem a filantropia.

Em suma, para a transformação da filantropia ocorrer, é preciso se perguntar: para qual projeto político a filantropia que você pratica está servindo? À perpetuação da concentração de riquezas, privilégios e do legado colonialista e supremacista do setor? Ou à luta de organizações e movimentos da sociedade civil pela conquista e garantia de seus direitos e ao fortalecimento de um sistema emergente, mas também ancestral, de filantropias? O WINGSForum deu um grande passo na inclusão do tema da transformação nas agendas da filantropia global, entretanto, ainda temos muitos desafios que enfrentar no campo. Mas certamente, os debates e as reflexões indicam um bom ponto de partida porque nos obrigam a sair das zonas de conforto e a questionar o status quo.


Graciela Hopstein é Mestre em Educação (UFF), Doutora em Política Social (UFRJ). Consultora, professora e pesquisadora na área social. Autora de artigos e livros com temáticas vinculadas a políticas públicas, movimentos sociais e filantropia. Foi diretora executiva do Instituto Rio (2012-2016) e atualmente (desde 2017) é a diretora executiva da Rede Comuá.

Jonathas Azevedo tem bacharelado em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense e especializou-se em Ajuda Humanitária e ao Desenvolvimento pela PUC-RIO. Em 2020, concluiu seu mestrado em Inovação Social e Empreendedorismo pela London School of Economics and Political Science. Jonathas atuou na gestão, monitoramento e avaliação de projetos e construção de parcerias no Brasil e Haiti. Tem experiência em projetos voltados a direitos humanos, articulação comunitária, redução de violência, entre outros temas. Atualmente, é assessor de programas na Rede Comuá e está membro do conselho administrativo da Médicos Sem Fronteiras Brasil.

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