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Pesquisa Doação Brasil 2022: Reflexões e Contribuições da Filantropia Comunitária e de Justiça Social

Em agosto de 2022, o IDIS (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social) e a Ipsos lançaram a Pesquisa Doação Brasil 2022, com o objetivo de trazer à luz o cenário das doações, que fornece informações cruciais sobre as motivações, percepções e expectativas de doadores e não-doadores no país. 

Esse texto tem por objetivo apresentar algumas reflexões sobre os resultados da pesquisa destacando os aspectos que chamaram a nossa atenção,  apontando para as lacunas e futuros caminhos para aprofundar o estudo e suas implicações para a cultura de doação no Brasil. Além disso, buscamos oferecer uma perspectiva de como a filantropia comunitária e de justiça socioambiental pode contribuir para essa discussão.

Perfil das Doações e Doações para Fortalecimento Institucional

Para compreender o cenário das doações, é preciso primeiro analisar o perfil dos/das doadores/as no Brasil. De acordo com a pesquisa, surpreendentes 84% dos/das entrevistados/as afirmaram fazer doações. No entanto, é crucial diferenciar entre doações gerais e doações “institucionais”. As últimas se referem a contribuições feitas a organizações, projetos ou iniciativas socioambientais, excluindo esmolas, dízimos ou fundos destinados a familiares e conhecidos. Notavelmente, apenas 36% dos/das doadores/as fizeram doações institucionais. Esse número permaneceu relativamente estável ao longo dos anos, com 46% em 2015, 37% em 2020 e 36% em 2022. A parte restante das doações compreende contribuições em espécie e trabalho voluntário. Além disso, há uma tendência observável com menos doadores/as mensais e um aumento na proporção de doadores/as que contribuem a cada três meses.

Esses dados apontam para o baixo volume de recursos doados para organizações sem fins lucrativos. Sob a nossa perspectiva, essa tendência indica, de forma geral, o vácuo no financiamento para instituições da sociedade civil, aspecto que pode ser explicado pela falta de confiança dos/das doadores/as (seja de pessoas físicas como jurídicas). Certamente, esse fenômeno pode ser entendido como resultado da  criminalização que a sociedade civil vem sofrendo de forma sistemática desde o início dos anos 2000. 

Motivações das Pessoas que Doam e Causas que Apoiam

Além disso, compreender por que as pessoas fazem doações é tão importante quanto saber quem faz as doações. A pesquisa revelou que uma parcela significativa (76%) dos/das doadores/as institucionais fez doações espontâneas em 2022, indicando que as pessoas doadoras brasileiras doam mesmo sem terem sido solicitadas. A pesquisa também identificou uma perspectiva positiva em relação ao aumento das doações, com 93% dos não-doadores/as indicando que poderiam começar a doar.

No entanto, a cultura de doação parece estar motivada maioritariamente por questões emergenciais e assistencialistas, se afastando das agendas de justiça social e de acesso a direitos.

Ao serem questionados sobre suas motivações para doar, 66% dos/das entrevistados/as mencionaram espontaneamente a “solidariedade com os/as pessoas necessitadas”. Essa tendência indica que a cultura de doação ainda continua sendo  predominantemente assistencialista para um grupo significativo de doadores/as brasileiros/as.

Embora a maioria dos/das doadores/as tenha expressado satisfação com suas doações, é essencial considerar o propósito dessas doações. Uma pergunta crucial  levantada enquanto analisamos o estudo foi: quais causas esses/as doadores/as apoiam e a quem estão inclinados/as a doar?

A pesquisa destacou que causas como infância e saúde (consideradas menos controversas do ponto de vista político) recebem mais doações, como também observado no âmbito do  Investimento Social Privado. O Censo GIFE (2020), revela que as agendas de justiça socioambiental, de acesso a direitos, com foco em minorias políticas não são prioritárias para as organizações filantrópicas corporativas e familiares. Apenas 5% dos associados  ao GIFE financiam diretamente iniciativas vinculadas à justiça racial  9% apoiam mulheres, 3% comunidades LGBTQIA+ e 4% pessoas com deficiência. Esses dados indicam que a  filantropia  e o ISP no Brasil não estão maioritariamente comprometidos com as agendas de redução de desigualdades sociopolíticas.

Confiança nas Organizações

Curiosamente, apenas 9% das pessoas doadoras para instituições afirmaram que doaram porque confiavam na organização à qual contribuem. Como mencionado acima, quando se trata de confiança nas instituições da sociedade civil, há uma lacuna significativa. Enquanto 66% dos entrevistados confiam nas OSCs para as quais doam, os 34% restantes parecem ter reservas. De fato, examinando as razões por trás de não fazer doações ou interromper doações, a pesquisa identificou dois fatores principais: a falta de recursos e preocupações sobre como o dinheiro seria usado. A última preocupação inclui a incerteza sobre o destino dos fundos e a falta de confiança nas organizações que solicitam doações, com 24% dos entrevistados citando essas causas. Por outro lado, dentre os fatores significativos que estimulam as doações a pesquisa aponta que “saber como o dinheiro está sendo usado” e “conhecer uma organização na qual confio” são determinantes para realizar esse tipo de doação, o que reforça a existência de comportamentos orientados pela falta de confiança 

Durante e após a pandemia, a pesquisa observou uma flutuação nos níveis de confiança. Inicialmente, o estudo revelou que houve um aumento na credibilidade das OSCs, que posteriormente diminuiu. Essa mudança pode ser atribuída a vários fatores, como o clima político, a cobertura negativa da mídia ou os ataques à sociedade civil que vem enfrentando de forma cíclica desde o ano 2005 com a instalação da CPI das ONGs. Apesar dessa queda, os níveis de confiança não retornaram aos patamares pré-pandêmicos, levantando questões sobre a sustentabilidade da confiança por parte da população com relação à sociedade civil organizada.

Essas descobertas enfatizam a importância da transparência e confiança na motivação das doações, sendo dados importantes para informar as estratégias de mobilização de recursos da sociedade civil organizada. Como enfatizado no evento de lançamento da Pesquisa, precisamos construir narrativas positivas e construtivas a respeito de quem recebe essas doações, já que uma sociedade civil organizada fortalecida é crucial para fortalecer a democracia no Brasil.

No entanto, fortalecer a democracia também passa por investir recursos em grupos vinculados às minorias políticas, que estão à margem do acesso aos recursos da filantropia, oriundos tanto de doações de pessoas físicas quanto por empresas, como mencionado anteriormente.

Sendo assim, destacamos algumas lacunas que precisam ser abordadas para obter uma visão mais abrangente das doações no Brasil.

Recomendações de Recortes Sociais para Aprofundamento da Pesquisa

Em primeiro lugar, chama a atenção a ausência do  recorte étnico-racial da pesquisa já que ela não mapeia doações realizadas pelas comunidades negras, indígenas, etc. Consideramos esse recorte seria fundamental para as novas edições, levando em conta a trajetória e ancestralidade desses grupos em iniciativas filantrópicas , bem como das organizações localizadas nas “periferias” que têm um papel importante para mobilização de recursos para equidade racial no Brasil.em  A pesquisa “Periferia e Filantropia” da Iniciativa PIPA publicada em 2023 destaca alguns dados importantes. Nas periferias do país, em sua maioria, mulheres negras e mães, estão mobilizando recursos para manter organizações da sociedade civil. No entanto, 89% das gestoras dessas organizações dividem seu tempo com outras funções, o que limita sua capacidade de dedicar-se inteiramente à sustentabilidade de suas iniciativas. Além disso, nas periferias, a grande maioria das organizações estão constituídas como coletivos (41.8%) e mais da metade não possuem CNPJ. Esses coletivos são de extrema importância para viabilizar o acesso a direitos de pessoas negras nas periferias. No entanto, 96% das organizações periféricas afirmam que possuem dificuldades em acessar financiamento para seus projetos. Trazer luz ao trabalho e necessidades das organizações periféricas é importante para que doadores brasileiros compreendam a sua relevância em contextos periféricos e no contexto nacional, contribuindo para uma compreensão ainda mais profunda sobre a cultura de doação no Brasil. E esse é um aspecto relevante para analisar a cultura de doação que deve focar além das origens das doações, o seu destino, isto é, para onde vão os maiores fluxos de recursos. 

Outra lacuna significativa é a ausência de recortes de gêneros e sexualidades não-normativos. Grupos marginalizados, como as pessoas LGBTQIA+, enfrentam dificuldades diárias no acesso a direitos e à justiça socioambiental. É importante ter um recorte mais amplo nesse sentido, incluindo transgeneridades e outras identidades não-heteronormativas, para entender as necessidades e iniciativas que esses grupos desenvolvem para mobilizar recursos.

Precisamos superar o paradigma branco, heterocisgênero e conservador das doações brasileiras, e fazer com que as mesmas se direcionam para mudanças estruturais, e não apenas emergenciais e assistencialistas.

Confiança e mobilização de recursos como um ato político: contribuições da Filantropia Comunitária e de Justiça Socioambiental para a cultura de doação no Brasil

Por fim, destacamos o papel estratégico da filantropia comunitária e de justiça socioambiental na discussão sobre a cultura de doação do Brasil.

A abordagem da filantropia comunitária envolve a mobilização  de recursos, talentos, capacidades e confiança em nível local. Ela transfere poder para as comunidades e atores locais, permitindo maior controle sobre seu próprio destino. A filantropia de justiça social apoia diretamente movimentos, organizações e grupos da sociedade civil envolvidos na transformação social, igualdade de acesso, direitos humanos e civis, distribuição de bem-estar e promoção da diversidade e igualdade de gênero, orientação sexual, raça, etnia, cultura e deficiência.

As organizações que atuam no contexto dessa filantropia fornecem apoio financeiro diretamente a organizações da sociedade civil, coletivos, grupos, movimentos e líderes comunitários. Essa prática contínua aprimora e agrega recursos e capacidades, fortalecendo, em última análise, sua capacidade de impulsionar uma mudança social mais ampla, contribuindo assim para o fortalecimento da democracia brasileira.

Pessoas e instituições que  atuam no contexto da filantropia independente e comunitária partem da premissa essencial de que a doação não é um ato isolado ou algo a ser realizado apenas de forma pontual ou emergencial, mas sim um ato político crucial para o desenvolvimento comunitário, o avanço da justiça socioambiental e a garantia de direitos. De acordo com a pesquisa “Filantropia que transforma: mapeamento de organizações independentes doadoras para sociedade civil nas áreas de justiça socioambiental e desenvolvimento comunitário no Brasil”, 67% das organizações mapeadas pela Rede em 2022 recebem recursos de pessoas físicas. A Pesquisa de Doação de 2022 revela um potencial ainda maior para essa mobilização.

Além disso, um dos princípios básicos da filantropia comunitária e de justiça socioambiental é a confiança, em contraste com as práticas filantrópicas tradicionais no Brasil. Essa filantropia reconhece estrategicamente o poder das iniciativas de base e das minorias políticas que buscam acesso a direitos e reconhecimento. Fundos temáticos, fundações comunitárias e organizações dentro da Rede Comuá, que representam a filantropia local independente, desempenham um papel fundamental ao fornecer doações cruciais para OSCs, organizações de base, movimentos sociais e defensores do acesso a direitos no Brasil, confiando que as mesmas conhecem as necessidades de seus territórios. Essas organizações mantêm conexões contínuas com líderes e grupos comunitários, formando uma rede de confiança e apoio. 

Outra contribuição importante da filantropia comunitária e de justiça socioambiental radica no destino das doações. 62% das organizações da filantropia independente fazem doações com o objetivo principal de fortalecer organizações ou comunidades com agendas específicas, sejam elas temáticas ou territoriais. Além disso, quase dois terços dessas organizações priorizam o aprimoramento da capacidade dessas entidades, demonstrando práticas de doação que verdadeiramente contribuem para a sustentabilidade das organizações. 

Além disso, essas doações se estendem ao apoio a movimentos sociais, coletivos e vários arranjos informais da sociedade civil. Essa abordagem é fundamental porque fomenta uma sociedade civil resiliente, fortalecendo, consequentemente, a democracia do país. Por consequência, doações são direcionadas para o avanço da justiça socioambiental entre grupos minoritários no Brasil. Além do fortalecimento institucional, organizações doadoras independentes investem em questões de gênero e direitos das mulheres, bem como cultura (ambos com 48%). Outros temas importantes incluem desenvolvimento comunitário (42%), agricultura familiar, agricultura urbana, agroecologia e agrofloresta (39%) e comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e tradicionais (35%). Isso demonstra a contribuição crucial que a filantropia comunitária e de justiça socioambiental tem para com a democracia brasileira e para o fortalecimento da cultura de doação em comunidades e territórios que, muitas vezes, têm dificuldades de acessar esses recursos.

Conclusão

A Pesquisa de Doações 2022 fornece informações valiosas sobre o cenário das doações no Brasil. Ela destaca a importância de compreender as motivações, preferências e preocupações dos doadores e não-doadores para promover uma cultura de filantropia no país.

Embora a pesquisa mostra tendências positivas, como o crescimento da cultura de doação e a maior disposição para doar, também evidencia a necessidade de análises mais profundas. As lacunas críticas, como a ausência de desagregação étnico-racial e LGBTQIA+, devem ser abordadas para obter uma visão mais completa do cenário das doações.

Além disso, a filantropia comunitária e de justiça socioambiental desempenha um papel crucial na formação desse cenário. Ao apoiar organizações de base e movimentos através de recursos financeiros e não-financeiros, esses esforços filantrópicos têm o potencial de impulsionar mudanças estruturais e contribuir para uma sociedade mais equitativa e justa no Brasil.

À medida que avançamos, é fundamental aprofundar o debate sobre a cultura de doação no Brasil, promovendo narrativas envolventes e inspiradoras. Isso envolve não apenas análises quantitativas, mas também explorações qualitativas para entender verdadeiramente as complexidades do cenário das doações e como ele pode ser direcionado para que tenhamos um país verdadeiramente inclusivo, justo e sustentável.

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