Abertura:
Oi, esse é o podcast Comuá, filantropia que transforma.
Aqui, abordamos as práticas da filantropia comunitária e de justiça socioambiental, difundindo o seu potencial para apoiar a transformação social, realizada pelas organizações da sociedade civil nos seus territórios.
Nesta primeira temporada vamos apresentar o Programa Saberes da Rede Comuá, que incentiva a produção de conhecimento a partir das práticas dessa filantropia. A produção de conhecimento sobre as transformações sociais nos territórios, feita por quem atua neles.
Nada sobre nós sem nós.
Neste terceiro episódio vamos conversar sobre o projeto da Mariana Assis, que sistematiza a experiência local do Instituto Comunitário Grande Florianópolis, o ICOM, com fortalecimento de organizações de base comunitária,que atuam na região da grande Florianópolis.
Este fortalecimento se dá por meio de consultorias individualizadas e gratuitas para o desenvolvimento institucional dessas organizações.
Cássio Souza, entrevistado no episódio anterior do podcast está conosco para mediar essa conversa com a Mariana.
Cássio:
Olá, eu sou Cássio Inglês de Souza, antropólogo, bolsista do Programa Saberes da Rede Comuá e estou aqui hoje pra conversar com a Mariana de Assis, guardiã de relacionamento com sociedade civil organizada do ICOM, nome muito bonito, mas eu vou deixar que a Mari se apresente aqui pra gente.
Mariana:
Olá pessoal, meu nome é Mariana de Assis, eu sou administradora de formação e atual estudante de direito e sou guardiã de relacionamento com Sociedade Civil Organizada do ICOM.
Cássio:
Vamos conversar um pouco sobre o seu projeto.
E a primeira pergunta que eu queria te fazer é o que te motivou a realizar esse projeto?
Qual é teu sonho?
Você sempre fala com muita paixão, com muita energia, então eu queria saber um pouco o que te levou a realizar esse projeto?
Mariana:
Foi por uma busca de um zelo pela memória da prática de uma fundação comunitária que é o ICOM, o Instituto Comunitário Grande Florianópolis, de fortalecimento por meio das consultorias.
Foi essa vontade de colocar em palavras, zelar pela memória de poder construir participativamente essa proposta junto com essa instituição, esse saber, essa prática que vem sendo realizada há mais de 10 anos que é o fortalecimento das organizações e grupos de base comunitária.
Isso que me motiva.
Me motiva porque também a minha prática, eu sou uma ativista e isso tem tudo a ver com a minha visão de mundo, com a minha proposta. Eu acredito que uma sociedade civil organizada forte consequentemente torna a democracia e a garantia de direitos também mais forte num determinado território.
Cássio:
E você poderia falar um pouco para gente qual foi a metodologia que você usou para esse teu trabalho?
Quais foram as atividades, como é que você conduziu essa tua análise e reflexão?
Mariana:
O como é sempre interessante porque ele vai se moldando de acordo com o tempo.
Mas eu tive primeiramente reuniões periódicas de mentoria, que eu acho que foi essencial para o rumo dessa pesquisa, para o que será escrito, as reflexões profundas, então eu tenho reuniões semanais com a minha mentora.
Paralelo a isso eu faço uma análise documental de números, de indicadores, de relatórios dessa instituição para me aperfeiçoar sobre o tema. Eu fiz ainda uma revisão bibliográfica sobre o tema, sobre a temática que está inclusive disponibilizado para todos os bolsistas no grande arcabouço de documentos e materiais para que a gente possa fazer alinhamento com a nossa proposta.
E também fiz entrevistas semiestruturadas com algumas pessoas que inclusive não estavam na programação inicial, mas que eu senti necessidade de conversar com alguns atores, os quais de alguma maneira participaram desse processo de fortalecimento ativamente. Eu falarei um pouco em breve.
E também adquiri um método descritivo, de realmente descrever, sistematizar e descrever a realidade, essa prática por meio da observação, o que foi bem interessante, pois me permite dentro dessa instituição observar alguns elementos intrínsecos nesse processo.
Cássio:
Legal Mari, eu queria te fazer uma pergunta em relação a isso, porque você está analisando uma instituição da qual você faz parte. Então você, de certa forma, está refletindo sobre o seu próprio trabalho.
Eu queria te perguntar como é que você se sentiu em relação a isso?
Mariana:
Eu confesso que foi um desafio enorme essa troca de chapéu, porque desde o início, e eu acho que isso é muito comum nas discussões que a gente faz em reuniões com a Rede Comuá, que é esse papel de pesquisador, pesquisadora. É um pouco distante da nossa realidade, porque a gente tem uma visão até errônea de que isso é academicista.
Pensamos que o pesquisador é aquele que está dentro da academia e que faz pesquisa, tem toda uma formalidade por trás. Eu acho que foi desafiador primeiro por estar com essa responsabilidade de ser uma pesquisadora e poder falar com saber técnico e popular sobre algo que realmente seja útil, que faça sentido pra sociedade, mas por outro lado, essa troca de papel de quem tá na prática, de quem tá dentro, do quanto que isso pode ser aprimorado aí na pesquisa.
Acho que o principal desafio que eu trouxe sobre essa minha reflexão prática é essa troca de chapéu, mas tem um outro desafio, e aí eu já vou me estendendo nessa minha pesquisa, nesse processo de construção de conhecimento que foi compreender o conceito e as características de filantropia comunitária.
Confesso que foi um processo bastante desafiador.O termo é bem polissêmico e conseguimos entendê-lo por meio de características nas quais ele vai sendo moldado conforme cada prática. Eu confesso que tive que me debruçar em vários materiais para poder me nutrir dessas informações. O conceito de filantropia comunitária alinhada à minha pesquisa, foi discutido amplamente e também já foi um outro desafio.
Um terceiro desafio foi compreender como esse processo de fortalecimento começou. A minha ingenuidade era achar que estava tudo sistematizado em documentos paralelos e bastava eu fazer um match, bastava eu fazer um complemento e colocar tudo isso numa mesma linha de raciocínio.
Mas não.
E isso é bem comum, do conhecimento estar com as pessoas e por isso a necessidade de fazer a entrevista, de conversar, de me colocar no papel de escuta ativa, de observadora desse processo de como tudo isso aconteceu, e não foi trivial.
Fez parte do contexto político aqui da grande Florianópolis, esse processo, essa demanda de colocar o ECOM como essa instituição que é muito demandada por outras organizações justamente por esse processo de consultoria.
Acredito que esses três pontos foram os principais desafios.
Essa troca de chapéu de pesquisadora e de quem está dentro de quem é consultora também, que está nesse atendimento.
Essa busca pelo conceito de filantropia comunitária. De características de filantropia, porque acredito que não é unilateral, eu acho que isso é que torna esse processo vivo e rico.
E essa questão de entender como começou essa disponibilidade e essa infraestrutura para essas organizações e grupos.
Cássio:
Nesse processo, muitos dos desafios que você colocou sabemos que a gente começa com um plano e as coisas vão acontecendo, e é preciso se ajustar.
Eu queria que você compartilhasse com a gente se alguma coisa te surpreendeu?
Alguma coisa que não estava esperada e se revelou, aconteceu no meio do caminho que foi importante ou interessante pra você?
Gostaria que você compartilhasse isso.
Mariana:
Eu acho que de inesperado e que não estava no script inicial, e tudo bem também pois acho que é isso que torna um processo rico e vivo, foi essa necessidade de conversar com outras pessoas que fizeram parte.
Eu me vi com questionamentos que ressoaram em mim, tais como “eu acho que isso não é o suficiente”, “isso não supre” “realmente eu não sei”.
Eu acho que essa humildade do pesquisador é super importante, o “não sei responder”.
Essa humildade, essa provocação nas mentorias de reflexões e perguntas, eu realmente não soube responder.
Então eu fui pedir ajuda, eu fui entender a visão de quem estava no início, de quem participou das consultorias, eu entrevistei cerca de 14 pessoas de dezembro à fevereiro, conversas de mais ou menos uma hora. Conversas que foram além das perguntas que eu havia preparado, que eram de três a quatro.
E trazendo de uma maneira bem detalhada para o público que está nos ouvindo, entender o que foram essas perguntas no desafio de relatar e construir como que uma organização é fortalecida, eu me vi com um questionamento para o ICOM, que é uma organização de base comunitária hoje.
Minhas dúvidas eram:
Faz sentido o hoje com o início?
Alguma coisa mudou?
O que seria a base para o ICOM? Para essa organização local aqui no sul, na grande Florianópolis, uma fundação comunitária?
O que a gente considera que é uma organização fortalecida?
O primeiro projeto foi em 2007, esses elementos perpetuam hoje?
O que mudou?
Foram nesse sentido de como começou o que que era feito, quais eram as principais demandas das organizações, como é que o ICOM via lá em 2007, 2008, a questão dos grupos e coletivos não formalizados, se estava no radar.
Hoje para a gente é muito nítido essa nossa proposta de trabalhar e reconhecer essas organizações que não possuem base jurídica, mas que são valiosas também para essas comunidades, que são importantes para o desenvolvimento dessas comunidades e que podem permanecer com as suas características próprias.
Essas perguntas que ressoaram em mim, me fizeram procurar pessoas que de alguma maneira fizeram parte desse processo. Fundadora, consultoras, ex-gerentes executivos e executivas, equipe do ECOM, consultora externa que o ECOM já têm relação, que faz parte, que é uma conselheira.
Essas pessoas foram algo inesperado porque essas conversas realmente me nutriram e subsidiaram a minha linha de raciocínio sobre o que realmente eu vou colocar, do que realmente eu vou escrever.
Foi super importante, super-rico esse processo.
Cássio:
Muito interessante Mari, assim, embora a gente trabalhe com realidades muito diferentes. Você trabalha com instituições do meio urbano de Florianópolis. Eu trabalho com projetos de comunidades indígenas no norte do Brasil, como tem algumas coisas que são parecidas.
Te escutando eu fico pensando sobre a importância dos ancestrais, a importância das pessoas que fizeram parte do processo da instituição e isso apareceu muito também na minha pesquisa conversando com o pessoal do ISPN sobre o que levou eles a estarem hoje trabalhando com os editais dos microprojetos.
É importante a gente olhar o passado, conversar com essas pessoas que fizeram parte disso de alguma forma.
Então, bem legal!
Isso me puxa uma outra questão, que é essa internalização. O acompanhamento da organização, no teu caso o ECOM, no meu caso que trabalhei mais com o ISPN, embora eu não faça parte, como é que eles acompanharam?
Quer dizer, você conversou tanto com pessoas que estão na linha de frente hoje do ECOM, mas também com pessoas que já participaram, já colaboraram em algum momento.
Como é que eles acompanharam o processo do teu trabalho? Essa coisa de a gente ter um tempo assim para parar e pensar sobre a nossa própria atuação?
Como é que foi essa interação com a tua turma por aí?
Mariana:
Foi super profunda, necessária e sensível, porque é aquela organização que está no processo de desenvolvimento, ela precisa se observar e nem sempre isso é trivial, nem sempre isso é algo relativamente confortável de se fazer. Quando a gente olha pro nosso interior você observa para tentar se desenvolver.
O ICOM está acompanhando todo esse processo, inclusive a equipe. Eu fiz esse momento em equipe para fazer essas perguntas, e periodicamente eu venho falando com pessoas da equipe, a gente ainda vai fazer o momento final, mas como a gente tá presencial, existem conversas paralelas.
Eu acho que os cafés tornam essa pesquisa rica. Porque no almoço, no café, eu vou falando como que tá sendo e aí num almoço e num café que vem coisas que: “Poxa, eu acho que era isso que estava faltando para dar uma engrenada nesse processo.”
Essa pesquisa, ela veio ainda num momento em que o ICOM está passando por um planejamento estratégico muito profundo. De um desenvolvimento institucional que já está rolando desde janeiro.
É a primeira vez que isso está acontecendo, pois esse ano o ICOM completa a sua maioridade, 18 anos. Então nada melhor do que refletir sobre esses últimos anos e se posicionar daqui pra frente.
A gente está num período pós-pandêmico, num período aí de redemocratização do país. E como que a gente quer se posicionar? Que tipo de ações a gente quer? Que tipo de briga a gente quer pegar? Que tipo de luta a gente vai se meter, ou não?
O ICOM está a meses, desde janeiro, passando por um ciclo de desenvolvimento institucional muito forte e isso casa diretamente com essa pesquisa das consultorias, desse fortalecimento.
Faz sentido? A consultoria ainda é o suficiente? Supre esse papel de fortalecimento?
Ou ela precisa vir num combo com outros tipos de ações como já vem acontecendo com doações, com projetos de fortalecimento um pouco mais imersivos.
É o suficiente?
A gente está preparado para continuar?
Se sim, como?
Então, isso está muito interessante porque isso vai estar subsidiando e está acontecendo ao mesmo tempo, durante o processo, essa reflexão interna dentro dessa instituição.
Cássio:
Muito legal!
Quando a gente consegue assim um trabalho que de certa forma é individual, da gente que tá conduzindo, mas ainda assim sentir que tem uma utilidade, tem algum retorno.
Tô entendendo que um retorno para o ICOM é um engajamento, uma participação sua mais qualificada nesse processo de planejamento. Com certeza tuas perguntas suscitam reflexões por parte da equipe.
Eu queria saber se tem mais alguma outra contribuição do teu processo de pesquisa para o ECOM como um todo, mas também para comunidade que vocês atuam.
Você já explicou que uma das estratégias, um dos mecanismos que o ICOM trabalha com as dezenas de organizações aí da sociedade civil de Florianópolis é através das consultorias.
Você acha que esse teu trabalho pode ajudar nesse processo das consultorias?
Talvez você pudesse falar um pouquinho disso Mari, da riqueza que é essa interação com a tua comunidade, que são as organizações da sociedade civil de base de Florianópolis e como que esse teu trabalho, tua pesquisa pode ajudar no trabalho com eles?
Mariana:
Um efeito, um achado muito interessante que eu descobri durante esse processo, foi que essa estratégia de consultoria e fortalecimento ela é uma estratégia de filantropia comunitária.
Ela é uma intervenção externa, ela é uma força externa que reconhece o poder daquela comunidade trabalhando com um de seus atores, componentes protagonistas, que são as organizações e grupos de base comunitária.
Há outros atores dentro dessa comunidade que a filantropia comunitária pode atuar, mas no caso do ICOM são os grupos e organizações de base comunitária.
Esse achado é uma virada de chave super importante, porque a gente olha pra essas organizações como organizações que realmente são fundamentais para defesa de direitos, para garantia de direitos, são elas que estão na linha de frente, são elas o primeiro contato, são elas que geralmente influencia a agenda pública de um determinado território.
Não é só atendimento, é garantia de direito, é fortalecimento de democracia, é trabalhar para influenciar a agenda pública, é criar tecnologias sociais. Então essas organizações têm um papel fundamental no desenvolvimento dessas comunidades, e geralmente é a primeira porta de entrada para esse público, para a comunidade.
Geralmente é o centro onde acontecem as reuniões, geralmente no interior dessas instituições. Entender que essas instituições fazem filantropia comunitária é o primeiro ponto.
E depois como que a gente fala isso para comunidade, é da melhor maneira possível e da maneira mais ancestral, na oralidade, conversando, falando, criando vínculo e confiança.
Essas são características de filantropia comunitária.
É claro que o meu papel, o resultado dessa pesquisa de maneira formal é escrever sobre essa sistematização, mas o vínculo é falando dela durante as consultorias, nos espaços onde o ECOM atua, o ECOM atua em vários conselhos, em vários espaços. E é nessa conversa, nesses cafezinhos, nesses vínculos que a gente vai falar de filantropia comunitária. Que a gente vai falar de reconhecimento dessas organizações.
De maneira simples sei que talvez espere assim o extraordinário, mas o extraordinário é conversar, é ter contato, é trocar com essas organizações e criar vínculos.
É isso que faz sentido!
Porque se faz sentir, faz sentido.
Isso só acontece por meio dessas trocas que geralmente de maneira muito mais rica quando tem esse contato, esse tête a tête, esse telefone sem fio. Um fala para um que fala para o outro e assim vai gerando esse efeito cascata.
Cássio:
Essa questão que você coloca Mari, assim do contato, da interação entre vocês do ECOM e as organizações de base é bem interessante porque isso guarda assim uma certa semelhança com o processo lá do ISPN de apoiar microprojetos para famílias e grupos de comunidades indígenas e de pequenos agricultores.
Porque não é só apoiar o projeto, tem toda uma orientação, tem todo um diálogo.
Uma das conclusões que a gente chegou é que na verdade o que a equipe do ISPN faz, ou pode vir a fazer, é muito mais do que acompanhar, é orientar, é assessorar, é transmitir ou transferir conhecimento e sabedoria do ISPN, que tem uma baita bagagem de gestão de projetos, para essas famílias que tão tocando as suas iniciativas e que muitas delas é a primeira vez que tocam uma atividade de forma autônoma.
É muito mais do que apoiar o projeto, é muito mais do que interagir, você tá fazendo justiça social nessa interação, uma transferência de conhecimento.
Achei bem legal que embora em contextos totalmente diferentes, são questões parecidas.
Mariana:
Posso só acrescentar pegando um gancho dessa tua fala que eu acho que eu não trouxe anteriormente?
É que, é uma relação de ganha-ganha.
Eu acho que é isso, eu acho que as organizações, elas oferecem um prato cheio pra gente enquanto ser humano, enquanto coletivo, enquanto democracia mesmo. Eu acho que as consultorias são a cereja do bolo.
Mas acredito que o que brilha os olhos das consultorias é o tipo de abordagem dessas consultorias que está nessa pesquisa. A abordagem geralmente é de uma facilitadora que facilita um processo de mudança dos dirigentes, dos gestores que estão dentro dessa organização para que encontrem um caminho juntos.
Um método de abordagem nas consultorias é o que faz ela ser sensível, é o que ela faz ela ser demandada, é o que faz ser participativa.
O local onde essas instituições estão geralmente essa fundação comunitária que tem esse papel também influencia muito, que é uma relação de ganha-ganha. O principal também disso é que quando a gente fala de apoio não é uma questão só de orientar. É uma intervenção externa, obviamente, mas de facilitar um processo de mudança que muitas vezes não está tão visível naquelas pessoas.
Então conversando e trocando com meios sensíveis de reconhecimento, essa própria organização se sente mais autônoma e capaz de trabalhar com seus desafios institucionais e comunitários.
Essa é a ideia.
É que essas organizações não sejam reféns em nenhum momento. É que essa organização não fique refém, mas ela seja capaz de trabalhar com as próprias pernas e possa trabalhar também com o seu desenvolvimento de maneira autônoma.
Inclusive pensando se aquilo faz sentido.
“- Ah, o método foi esse?
- Poxa, mas aqui a gente replicou ele de outra maneira e é assim que a gente faz.”
E isso está dando muito certo. Dessa maneira compartilhamos esses outros saberes com outras pessoas e essa é a ideia.
A ideia é sempre de fazer em coletivo, de articulação.
A consultoria tem sempre esse papel:
Isso é muito comum, muito comum organizações que trabalham com as mesmas temáticas ou com as mesmas causas ou que estão no mesmo território não atuam de maneira coletiva e eu acho que isso também faz toda a diferença.
Esse processo de abordagem também é um dos pontos que são muito interessantes na hora que a gente fala da possibilidade de apoiar e intervir aí nesse processo de fortalecimento.
Cássio:
E Mari, eu imagino que essa metodologia da consultoria é algo que vocês tem no ECOM, que vocês já desenvolvem há muitos anos, é uma prática, digamos assim, institucionalizada no ECOM.
Mas eu imagino e queria que você falasse um pouco sobre isso, que embora talvez vocês tenham uma metodologia meio padrão, cada caso é um caso, então você vai conversar com uma instituição, talvez vocês enfoquem um aspecto da consultoria, em outras instituições são outros aspectos.
Se você pudesse falar um pouquinho mais para a gente sobre isso, seria legal, porque isso realmente, assim, essa variabilidade, adaptabilidade e o fazer junto, eu acho que é base para qualquer trabalho de apoio a filantropia na justiça social com organizações de base.
Mariana:
Excelente pergunta, porque isso me remete a uma uma analogia superinteressante.
As consultorias são uma espécie de cachoeira. A cachoeira parte do mesmo lugar e ela desemboca de maneira diferente quando ela cai, ela depende de fatores externos.
A chuva a torna muito cheia, então a demanda que vem muito cheia desemboca aí de uma maneira diferente nessas pessoas.
Ou às vezes ela está rasa, às vezes ela está superficial, às vezes ela está como uma cascata.
E aí o processo de desenvolvimento, também vai por um outro caminho.
Para mim as consultorias são uma espécie de cachoeira, ela parte do mesmo lugar, ela tem o método, mas a forma como ela vai caindo, como ela vai se desenvolvendo, como ela chega e ressoa nessas pessoas que estão dentro dessas organizações é diferente.
A forma também como elas vão levar esse aprendizado, levar essa troca para as suas instituições também é diferente. Eu acho que essa analogia com a Cachoeira faz todo sentido. Parte do mesmo lugar, depende de fatores externos, às vezes ela está transbordando, às vezes ela está um pouco rasa e aí a gente vai ligando e se moldando.
Podemos até mesmo perceber que cada cachoeira é diferente e tem suas características próprias. Uma mais alta, outra menor, enfim, acho que a gente consegue fazer essa analogia importante quando a gente pensa nesse processo de consultoria, de apoio a essas organizações e grupos de base comunitária.
Cássio:
E voltando pro teu trabalho em si, tua pesquisa.
Mari queria que você sistematizasse para a gente quais são os seus achados até o momento?
Quais são as principais conclusões, enfim, coisas que você está aterrissando aí na tua pesquisa?
Mariana:
O principal achado desta pesquisa, pode parecer um pouco repetitivo mas eu gosto de enfatizar, é que quando a gente pensa em filantropia comunitária, geralmente a gente pensa em doação financeira no senso comum e isso cai para uma doação, uma forma de apoio financeiro que reconhece o poder das comunidades.
A consultoria é uma forma de apoio intelectual, de capital social. Uma outra forma de apoio que é uma estratégia de filantropia comunitária. Eu acho que isso torna a filantropia cada vez mais rica e vimos isso nos estudos, isso a gente vê nas bibliografias.
A filantropia comunitária não tem a ver só com transferência de recurso financeiro ou doação de recurso financeiro, que reconhece o poder daquela comunidade. Mas tem doação de tempo, tem doação de capital intelectual, tem doação de metodologias, tem trocas.
A consultoria entra nesse quesito. Suas características de poder valorizar as relações de poder, reconhecer o poder das comunidades por meio dessa troca de apoio técnico, e aí eu não gosto muito da palavra técnica porque ela coloca numa caixinha, mas dessas relações e trocas pro desenvolvimento institucional e comunitário é o principal achado desse tipo de filantropia comunitária.
Eu acredito que vai também dar um olhar um pouco diferente, comparado com outras pesquisas, pois a consultoria geralmente pode ser uma estratégia e ela pode inclusive ser pré-requisito quando se fala de doação financeira. Que é o que vem acontecendo, é uma tendência que está acontecendo.
Não se faz mais só doação financeira. Se faz um acompanhamento, se cria um vínculo
Acho que isso se tornará cada vez mais latente e até mesmo um pré-requisito para qualquer tipo de intervenção na comunidade, seja de apoio financeiro, ou não.
Esse processo de troca de acompanhamento de troca de saberes vai ser fundamental, vai ser sempre ali imbricado nesse sentido.
Cássio:
Super importante isso que você está falando Mari, olha vou até repensar algumas coisas que eu escrevi no meu estudo para valorizar um pouco essa questão que você está colocando.
Capital, digamos assim de conhecimento, que está aí se inserindo na filantropia comunitária. Essa transferência de conhecimento, essa orientação, essa pegada pedagógica de uma instituição para outra é super importante.
Muitas vezes até acaba superando uma eventual transferência financeira, pois o dinheiro, a gente gasta e termina. O conhecimento, o fortalecimento institucional, a aprendizagem, isso fica e pode ser multiplicado e potencializado.
Muito legal isso que você tá colocando e acho que fico curioso para depois ver o resultado disso nos teus textos que você sempre gosta de escrever.
Valeu aí, por essa reflexão!
Mariana:
E por favor, não é a minha intenção falar que agora será somente o capital intelectual. Pelo amor de Deus, a gente precisa de recurso financeiro nessas comunidades.
A gente está num mundo capitalista, a gente precisa. O dinheiro move muita coisa. Se na escassez a gente faz muita coisa, imagina na abundância.
Então por favor coloquem dinheiro nas comunidades!
Redistribuam o capital, distribuam a renda. Isso é super importante!
Não que eu seja contra a não mais fazer doações para as comunidades, pelo contrário, cada vez mais eu reforço esse papel de doação financeira.
E aí não é doação de coisas. É doação financeira. De recursos financeiros para missão daquela organização, para fortalecer o que ela já faz e não para projetos de início, meio e fim. Isso muitas vezes só cansa aquela organização.
Às vezes até fragiliza porque tem que ficar se moldando com um projeto de início, meio e fim para poder se fortalecer. Então, cada vez mais recursos livres e financeiros com base na confiança no trabalho dessas instituições.
Desculpa, Cássio, mas eu fui obrigada a fazer esse adendo.
Cássio:
Eu acho que é importante porque o que você coloca é claro que o meio principal da filantropia comunitária é a transferência de recurso, é aplicação de recurso.
O que você está colocando é um uma ampliação das possibilidades e das estratégias de filantropia comunitária, de estarmos realmente prestando atenção nessas outras possibilidades, investindo nelas.
E você tocou numa palavra muito importante para mim, no meu trabalho, que é a questão da confiança.
A transferência de recurso muitas vezes coloca burocracia, prestação de contas e tudo mais, que muitas vezes são necessárias por conta dos financiadores, mas a questão é que a gente precisa dar um voto de confiança para as nossas organizações parceiras, para os nossos executores de projetos.
E muitas vezes o simples voto de confiança gera uma transformação de autoestima, de engajamento, de empenho dessas organizações na realização das atividades.
Eu queria te perguntar a partir desses teus achados, pensando um pouco fora da caixinha, para fora do ICOM, pensando na própria Rede Comuá, qual o potencial de replicabilidade do teu trabalho?
Como é que você acha que isso pode ser utilizado, como inspiração por outras instituições que às vezes até tem um perfil diferente do ICOM?
Como é que você acha que eles podem se utilizar desse conhecimento, dos achados que você teve no teu trabalho?
Mariana:
O grau de replicabilidade, Cássio, é enorme e necessário. A gente necessita de mais organizações de infraestrutura. É necessário mais organizações, fundações comunitárias, mas mais organizações de infraestruturas que tenham características nesse sentido.
Organizações de suporte, organizações que sejam um ponto de referência para aquelas organizações de grupos de base comunitária. Que seja aquela organização que acolhe, que seja aquela organização que é uma espécie de incubadora que está ali para apoiar o desenvolvimento dessas iniciativas.
Então o grau de replicabilidade, a minha ideia é provocar para que surjam mais formas de apoio, de organizações de infraestrutura ou pessoas que apoiem redes, e a Rede Comuá é um grande exemplo disso, que articulem e sejam uma organização de infraestrutura e que deem uma abordagem mais democráticas e sensíveis que reconheça a comunidade.
Eu acho que isso é um dos elementos principais da filantropia comunitária. Formas de abordagem, formas sensíveis, formas de estar na comunidade com humildade, que apresentem essa relação de ganha ganha, que tenham uma relação transformista e não reformista, que seja de fora pra dentro.
É o que a gente necessita e é um grande potencial de replicabilidade em outros espaços que tenham suas características próprias. A ideia e o meu sonho é que cada comunidade tenha uma organização de suporte de infraestrutura.
Que cada território consiga fornecer subsídios para que essa organização tenha a possibilidade de se desenvolver e possa pensar fora da caixa que é o que você trouxe Cássio.
Que seja possível criar mais tecnologias sociais e trabalhar no mínimo com redução das desigualdades. Eu sei que juntos enquanto campo não conseguimos sozinhos e também não é só o nosso papel, mas articulado com outros atores como o poder público, a iniciativa privada, a gente consegue criar um desenvolvimento.
E aí como que a gente articula com esses outros atores?
Como que a gente foge também das nossas bolhas?
Como que a gente faz intercâmbio de saberes pro Nordeste, pro Norte-Sul, sabendo que o Brasil tem essa diversidade cultural nessas comunidades.
Eu trago isso porque quando a gente fala de uma fundação comunitária no Sul do Brasil, e aqui eu não estou medindo onde que está mais problemático, onde não está, onde precisa mais, mas a gente sabe realmente onde se concentram os investimentos sociais no Brasil como um todo, no território brasileiro.
Mas é interessante falar que quando a gente fala de Floripa, a gente fala de uma das cidades com os melhores índices de desenvolvimento humano do Brasil, a capital pra se morar, um polo tecnológico.
Realmente tem o seu lado bom, mas é bom a gente apontar que aqui tem comunidade, tem favela, existe fome, existem pessoas em situação de rua. Então o nosso papel é realmente equilibrar, tentar no mínimo, minimizar enquanto instituição esses problemas que são estruturais que tem a ver com a desigualdade social.
Nesse processo de democratização cada vez mais organizações de suporte e cada vez mais organizações que articulam com outras organizações e cada vez mais organizações que tenham uma abordagem mais sensível dentro das comunidades.
Inclusive meu sonho de projeto, e aí já fica a dica para gente pensar e eu imagino muito, eu sou uma entusiasta, eu imagino muita coisa, mas é realmente uma etnografia, uma imersão de uma pessoa numa favela. Durante um mês.
E aqui em Floripa a gente tem uma comunidade da grande Floripa que não tem sequer banheiro. Fica um mês naquela comunidade e saia um pouco mais reflexivo.
Falar às vezes não adianta, então talvez a gente possa criar esses processos imersivos, que fazem a pessoa entender o que é estar com menos de 60 reais por dia. É sobre isso.
E a gente sempre fala, estamos no mesmo barco. Não estamos no mesmo barco.
Um está de está de barco, o outro está de lancha, o outro está de navio, o outro está se afogando.
É muito triste, é muito assustador a desigualdade que existe dentro dos territórios. É claro que a gente vê o lado macro, mas a filantropia comunitária, ela nos permite entrar no micro, ela nos permite olhar as comunidades para além do território brasileiro, para além da região Sul, Norte, Nordeste, Sudeste, para além de Floripa.
E aí eu acho que ela, a filantropia comunitária, é isso. Ela vai se embicando ali, numa engenhosidade de entrar nesses micros, ela tem esse olhar micro e ela tem esse potencial de poder replicar em olhar macro, de poder trazer tendências e formas e saberes e práticas que realmente podem ser observadas e realizadas em outros locais.
Cássio:
Mari, por fim, de todo esse processo que você tem passado, o que mudou para Mariana de Assis?
O que você leva de todo esse processo?
E também te pedir aí pra fazer suas considerações finais, talvez uma mensagem para os nossos amigos e amigas da Rede, enfim, deixo a palavra contigo.
Mariana:
Eu sou uma pessoa inconformada com as injustiças sociais do país. Sou uma pessoa muito crítica assim.
Esse trabalho e esse processo primeiramente me dão combustível para continuar. Eu sou cria de comunidade, eu sou cria de projeto social. Então estar escrevendo sobre isso, é um ponto sensível que eu acho que mexe com a forma de como eu vejo o mundo.
E mais do que isso, eu acho que é esse combustível que dá pra seguir em frente para saber que a gente não está só, para saber que tem uma Rede Comuá, que pode articular pessoas de vários países, e o seminário ano passado só demonstrou isso, que a gente pode estar conectado aí com os dinossauros do campo da Filantropia Comunitária e é muito incrível esse contato.
Acho que é isso, assim, isso mexe num ponto que só a minha existência, a minha razão de existir é o suficiente para me contemplar assim. Então, para além de uma pesquisa é esse processo de construção de um saber que eu vou levar pra vários lugares que eu frequentar que eu estiver participando, então com certeza isso me impactou de uma maneira super significativa.
A Mariana de setembro de 2022 e a Mariana de hoje, não é a mesma provavelmente, isso é bom porque já diz uma frase do Emicida: “A pessoa que passou 20 anos, dos 20 aos 40 não mudou, essa pessoa não evoluiu, não se desenvolveu.”
Então, eu acredito que cada dia mais eu venho me desenvolvendo e me nutrindo e isso só me dá combustível para poder seguir em frente, eu acho que esse foi o principal achado, os principais efeitos que ressoam e palpitam aqui meu coração.
Eu acho que ele fica quentinho mas ao mesmo tempo ele continua inconformado.
Porque quando a gente fala de filantropia comunitária a gente fala de luta. E muitas vezes não se faz luta só na paz mas apontando também as iniquidades sociais e no enfrentamento também da gente poder falar o que está aí.
Isso me move a seguir em frente independente se eu estiver no ICOM ou não, eu vou carregar isso para outros espaços que eu frequentar. Acho que esse é o principal efeito cascata que dá quando a gente trabalha com uma pesquisa como essa.
Só agradecer, agradecer por todo o incentivo, todo o apoio nessa Rede incrível.
Mais do que isso, eu me enxergo daqui cinco anos olhando o Programa Saberes e olhando que eu fiz parte desse projeto piloto, que eu estava nesse pioneirismo desse processo de fortalecer as pessoas e de fortalecer um grupo que é super representativo em termos de Brasil.
Eu acho que esse grupo diz muito, tem pessoas muito diversas e com muitas histórias diferentes e acho que isso torna uma pesquisa muito mais rica.
Então gratidão, só tenho a agradecer por todo apoio, toda confiança, tô muito feliz.
E mais ainda feliz de saber as novidades, de como isso vai ser replicado, de como a gente pode fazer isso da melhor maneira possível.
Cássio:
Beleza Mari, super obrigado, valeu, foi ótima a conversa e vamos aguardar os próximos episódios com os nossos colegas pioneiros do Programa Saberes.
Encerramento:
Esse foi o terceiro episódio da temporada Saberes do Podcast Comuá, Filantropia que Transforma.
O Programa Saberes fomenta a produção de conhecimento que sistematiza práticas da filantropia comunitária e de justiça socioambiental, demonstrando sua potência para fomentar a transformação social.
O Podcast Comuá, é uma realização da Rede Comuá, roteiro, produção e captação da equipe executiva da Rede Comuá
Edição do estúdio Ybory.
Disponível nos principais agregadores de podcasts e no site redecomua.org.br
Até o próximo episódio!
Host: Cássio Souza
Entrevistada: Mariana Assis
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