Foto: Rede Comuá
Por: Yasmin Morais
Quando pousei em Bogotá, meu instinto foi parar um pouco e encher os pulmões de ar, me dando conta de que o organismo, acostumado a viver no mar, sentia a necessidade de andar mais lento e respirar mais fundo. O motivo de encarar a altitude da capital colombiana era acompanhar minhes colegas da Rede Comuá, pela primeira vez, no #ShiftThePower Global Summit, organizado pelo Global Fund for Community Foundations. Aqui, vou compartilhar algumas das reflexões que registrei ao longo do evento e que voltaram comigo ao Brasil, reverberando ainda nas trocas e no trabalho que desenvolvemos na Rede.
Ao chegarmos ao evento, a recepção foi lenta e calorosa, e logo deu lugar a abraços tão esperados em pessoas que antes eram apenas janelinhas no Zoom, mas que agora dividiam as inspirações profundas conosco. De cara, deu para perceber que estávamos em outro ritmo. Para nós, este foi o maior diferencial do evento: agendas flexíveis, tempo para descanso, espaços diversos para escuta e trocas de qualidade com quem encontrávamos pessoalmente pela primeira (ou pela décima) vez.
Nosso costume, por influência do modus operandi capitalista em que vivemos, é com eventos acelerados para chegar em resoluções e encaminhamentos imediatos, ou para escutar o máximo possível de painelistas para absorver um décimo do que ouvimos. No #ShiftThePower Summit, essa mania de chegar rápido deu lugar a uma outra prioridade: cuidar de si e das outras pessoas para, então, testemunhar as mudanças pelas quais tanto trabalhamos. Aprendemos sobre o quão importante – e revolucionário – é centralizar o cuidado no nosso trabalho, respeitando a necessidade de, às vezes, parar tudo e respirar. Para Magda Pocheć, do FemFund (Polônia), isso é parte de um ativismo regenerativo, aquele que resiste à lógica capitalista de explorar a nós mesmos em nome de uma produção desenfreada, sem descanso e sem espaço para nossas limitações humanas. Como ela disse em sua fala durante uma das plenárias, isso é uma forma poderosa de pré-figurar outros futuros possíveis, até que o que acreditamos seja também a forma que trabalhamos (“our what is our how”).
Na medida em que seguimos escutando a nós mesmes e às pessoas de mais de 80 países, ouvimos, vimos e sentimos diversas outras construções do que é – e o que pode ser – poder. Além de cuidar e ser cuidado, poder é dividir uma refeição sem carnes de origem animal; aprender os passos de salsa que marcaram o solo onde pisávamos; praticar e ensinar espanhol ou português às nossas parcerias anglófonas; convidá-las a conhecer nossa latinidade diversa e potente; aproveitar os intervalos para provar das bebidas ancestrais colombianas e, com elas, a sabedoria indígena que, por tanto tempo, manteve viva a paisagem que admiramos pelos corredores do evento.
A experiência em Bogotá foi, portanto, uma forma de pré-figurar o poder. Fazê-lo menos centralizado, mais diverso, colorido, coletivo, lento. No entanto, durante o evento, não pudemos deixar de questionar o poder que ainda precisamos desmantelar para que seja, então, possível cuidar de nós, dos nossos e de nossos territórios com toda força e potência que sempre tivemos.
As oficinas facilitadas ao longo do evento foram importantes para dar vazão a esses questionamentos. Nas sessões sobre Medir o que Importa e sobre Decolonização, ambas no contexto da filantropia e do desenvolvimento, criticamos as práticas coloniais e capitalistas que ainda permeiam as relações de poder entre nós, nossas equipes, nossas parcerias e financiadores. Não pudemos deixar de notar a falta de uma parte significativa de tomadores de decisão influentes no nosso campo, bem como a sensação de que ainda temos pouco em nossas mãos para de fato deslocar o poder para as comunidades. Além disso, as sessões nos lembraram da profundidade das estruturas as quais tanto queremos mudar. Barry Knight, do Global Fund for Community Foundations, colocou que as ferramentas que temos hoje para medir o impacto do nosso trabalho são coloniais e desenhadas pelo norte global. Da mesma forma, são os modelos de projetos que pedem resultados imediatos e escaláveis, indo de encontro ao ritmo das mudanças sociais: não-linear, complexo e, muitas vezes, lento.
Aliado a isso, Ambika Satkunanathan, Neelam Tiruchelvam Trust (Sri Lanka), em sua fala brilhante em uma das plenárias, nos alertou sobre o risco de tornar a justiça social mais “palatável” para financiadores, despolitizando e “corporativizando” as nossas lutas, de forma que sirvamos mais aos interesses capitalistas do que às reais necessidades de nossos territórios. Marie-Rose Romain Murphy, da Haiti Community Foundation (Haiti) complementou a fala de Ambika com uma provocação: “imagine se as pessoas enviassem uma proposta para financiar a revolução!”. Em suma, parte do exercício de transformar o poder também implica se preparar para dizer não e preservar os valores e saberes que pré-figuram o poder que nós queremos.
Afinal, como coloca Batliwala (2018), poder não se trata apenas do acesso a recursos e da capacidade de agência a partir deles. Poder é também acessar direitos e oportunidades; é decidir sobre a distribuição desses recursos e sobre tudo que nos afetar, seja de forma individual ou coletiva. Poder é também ter influência para definir agendas e prioridades; para falar e ser ouvide; para ter seu trabalho valorizado, seja ele produtivo ou reprodutivo.
Essa definição complexa de poder nos lembra que vivemos em relações hierárquicas de poder o tempo inteiro, inclusive nos espaços de influência das nossas organizações, como disse Ambika em sua fala. Na medida em que buscamos aproximar essas discussões de atores influentes no campo da filantropia, também é importante ter consciência do nosso poder individual, institucional e coletivo. Que privilégios facilitam nosso acesso a recursos? De que formas decidimos sobre a distribuição desses recursos? Que agendas e grupos se beneficiam deles? No nosso contexto, o que significa “transferir poder”, na prática?
Essas são reflexões difíceis, que se tornam mais genuínas e se aprofundam quando feitas em conjunto. Sendo assim, uma forma poderosa de descentralizar o poder é através das redes, pois elas facilitam a cooperação entre pessoas diversas, fortalecem agendas, trazem mais segurança e confiança a quem participa. Em Bogotá, alguns dos abraços que me marcaram foram com as pessoas do grupo Queer que havíamos criado antes do evento. Com elas, pude sentir que não estava só e que o mundo que tanto envisionamos ao longo dos dias na Colômbia se aproxima quando estamos juntes. Da mesma forma, me senti ao encontrar o pessoal da Aliança Territorial, que nasceu e tem sido gerada na Rede Comuá. O poder dos territórios em que a Aliança está é visível e será ainda mais fortalecido a partir dessa rede.
Assim, o evento terminou com um reforço individual e coletivo de deslocar o poder onde estivermos, valorizando saberes e práticas políticas que contribuem verdadeiramente para as transformações que buscamos.
Por fim, compartilho aqui um trecho de um poema que escrevi ao refletir sobre a nossa experiência no #ShiftThePower Global Summit.
[…]
deslocar o poder
dá-lo a novas mãos
mãos que o molde
o chacoalhe
o divida
o transfira
o quebre
reconstrua
o lance ao ar
pra enfim chegar lá
nas ruas, vielas
nas putas, favelas
nos muros, aldeias
quilombos, teatros
nas praças, nos rios
nas caras
de quem insistiu
em nos matar
[…]
mudar o poder
pra gente poder decidir
mudar o poder
pra gente poder respirar
Referências:
Batliwala, S. (2018), All About Power: Understanding Social Power & Power Structures. New Delhi: CREA.