Arte: London Funders
Como é trabalhar como uma rede de financiadores tentando criar mudanças? Qual a posição dos financiadores em um ecossistema mais amplo de movimentos e grupos da sociedade civil que trabalham em prol de uma reforma fundamental?
Continuando com o nosso foco de aprendizado na mudança sistêmica, conversamos com Jonathas Azevedo, Assessor de Programas na Rede Comuá, do Brasil, uma rede de financiadores que atuam nos campos de justiça socioambiental, direitos humanos e desenvolvimento comunitário. Jonathas compartilhou o que aprendeu sobre o significado de colocar as comunidades no comando e os financiadores como parceiros em vez de guardiões da mudança, e muito mais.
Muitos dos temas que discutimos com Jonathas ressoaram com o nosso próprio trabalho e com o trabalho dos nossos membros aqui no Reino Unido – o envolvimento e o aprendizado com colegas de todo o mundo ajudam a moldar nosso próprio pensamento à medida que buscamos formas de enfrentar juntos alguns dos desafios que nos afetam coletivamente, desde a crise climática até a pobreza e as injustiças sofridas pelas comunidades de Londres.
Antes de qualquer outra coisa, pode nos contar um pouco mais sobre o trabalho realizado pela Rede Comuá?
A Rede Comuá reúne o que chamamos de organizações doadoras independentes no Brasil. Isso quer dizer organizações que mobilizam recursos de diferentes doadores, e não organizações vinculadas a uma empresa ou uma família rica. São, em sua maioria, organizações criadas a partir de movimentos sociais no Brasil. Elas têm governança independente que é geralmente composta de representantes de movimentos sociais, membros da comunidade e assim por diante.
A Rede foi fundada em 2012, com a ideia de reunir essas organizações doadoras independentes porque, quando olhamos para o ecossistema filantrópico no Brasil, vemos que ele consiste principalmente de empresas privadas, fundações familiares e corporativas etc. As organizações doadoras independentes não se sentiam conectadas a esse ecossistema filantrópico mais amplo – a forma como faziam doações e trabalhavam com a sociedade civil era muito diferente. A filantropia local no Brasil é muito conservadora e não necessariamente apoia iniciativas relacionadas à justiça socioambiental e aos direitos humanos.
Assim, a Rede Comuá nasceu do desejo de abrir esse espaço para viabilizar a troca de experiências e perspectivas, mas principalmente para promover e impulsionar a filantropia comunitária e de justiça social no Brasil.
Uma das nossas principais áreas de atuação é o nosso programa de incidência, que tem três pilares fundamentais: o primeiro é centrado na formação de coalizões, facilitando campanhas conjuntas, conexões e alianças entre os membros; o segundo é a produção de conhecimento – pesquisamos muito a filantropia comunitária e de justiça social no Brasil, porque há poucos dados disponíveis sobre essas práticas no país, então para nós é realmente essencial evidenciar e exemplificar outras formas de fazer filantropia e apoiar a sociedade civil (fizemos recentemente um mapeamento das organizações doadoras independentes no Brasil, que traduzimos para o inglês e está disponível aqui). O terceiro pilar está ligado a isso, tratando de comunicação e parcerias. Parte do nosso trabalho de incidência visa influenciar os doadores mais tradicionais a mudarem as suas práticas.
O que todos os nossos membros têm em comum é o seu papel de fortalecimento da sociedade civil e da democracia, apoiando grupos minoritários no acesso aos seus direitos.
Qual você acredita ser o papel das organizações doadoras independentes para a mudança dos sistemas existentes no Brasil?
É interessante porque as organizações doadoras independentes e aquelas que trabalham com ‘filantropia comunitária’ não se veem como os agentes principais de transformação – os atores que realmente impelem a mudança sistêmica são os atores da sociedade civil – com toda a sua diversidade de movimentos, coletivos, organizações da sociedade civil e assim por diante. Então, em se tratando de atores da filantropia comunitária, ocorre que eles estão financiando a transformação, com apoio mais flexível e acessível, de modo que se veem mais como facilitadores desse processo transformador.
Portanto, para nós da Rede Comuá, quando falamos de mudança sistêmica, pensamos no financiamento e apoio àqueles que estão à frente dessa mudança, e não de os próprios financiadores mudarem diretamente os sistemas.
O que os grupos da sociedade civil com os quais vocês trabalham dizem precisar dos financiadores para promover mudanças?
Não seria correto da minha parte falar em nome de todos os grupos da sociedade civil no Brasil, mas o que tem nos chegado é a necessidade de financiamento flexível e plurianual que apoie a operação desses grupos. Trata-se de respeitar a autonomia e o conhecimento desses grupos – que sabem quais são as soluções e do que eles precisam.
“As pessoas acham que se trata apenas de gastar o dinheiro e pronto, mas, pela experiência dos nossos membros, não é esse o caso. Trata-se de relacionamentos, de construção de confiança, de envolvimento ativo, de ouvir os grupos da sociedade civil e de participar da mudança”.
Muitos desses grupos não são necessariamente organizações formalizadas, nem querem ser. Eles fazem parte de movimentos sociais ou grupos indígenas que trabalham para proteger seus direitos – a maioria dos grupos apoiados pelos membros da Rede Comuá se enquadram nessa categoria. Acredito que se trata de desenvolver uma forma de financiamento que não se limite apenas ao apoio financeiro, mas também ao compartilhamento de informações, do que acreditam ser a melhor forma de trabalhar com esses grupos, de respeitar seus interesses, cooperar ativamente e ouvi-los. Eles sabem como apoiar esses movimentos sociais, seja por meio de um responsável fiscal ou outras estratégias criativas, em vez de forçá-los a se registrar como instituições filantrópicas e adotar modelos de governança mais tradicionais.
Nossos membros também buscam descobrir a melhor forma de apoiar grupos com iniciativas de autocuidado e proteção para defensores de direitos humanos – isso é algo que os financiadores tradicionais não necessariamente têm interesse em financiar, mas sabemos que, quando se trata de organizações e movimentos liderados por minorias políticas, eles vivem em um contexto em que são constantemente atacados e, portanto, precisam desse tipo de apoio.
Como é trabalhar como uma rede de financiadores que buscam instituir mudanças? Poderia citar alguns dos desafios que vocês enfrentam?
Acho que um dos maiores desafios tem a ver com o tempo e a falta de recursos humanos para fazer esse trabalho – construir vozes e narrativas coletivas demanda tempo, não apenas de nós, mas também dos nossos membros.
Outro desafio é, obviamente, o financiamento – nossos membros precisam mobilizar recursos de diferentes fontes, diferentes fundações e assim por diante. A captação de recursos leva tempo e é fundamental para o trabalho dos nossos membros. Outra questão que surge para nós como rede é o esvaziamento de pautas em geral e a cooptação de determinadas agendas. Um exemplo recente que vimos no Brasil foi com a decolonização da filantropia. Além disso, após o assassinato de George Floyd, muitas fundações criaram iniciativas e grupos de trabalho de DEI (diversidade, equidade e inclusão), mas agora vemos que isso se tornou menos prioritário e não está sendo sustentado. Portanto, há um desafio em termos desse engajamento de curto prazo no trabalho antirracista, mas ele não é sustentável.
“Agora é o momento de continuarmos a apoiar os grupos da sociedade civil e as organizações que estiveram na vanguarda da resistência”
Para os nossos membros, isso sempre fez parte do seu trabalho e é parte do seu trabalho diário trabalhar contra o racismo, pela igualdade de gênero e temas semelhantes, mas para a filantropia mais tradicional é mais difícil abrir mão do poder, então muitas vezes vemos esse esvaziamento de pautas e ações meramente simbólicas.
A outros financiadores interessados em trabalhar dessa forma, o que você recomendaria que fizessem ou pensassem?
Eu diria para ousarem nas suas doações, para doarem seu dinheiro de uma maneira que faça sentido para as suas comunidades e organizações parceiras. Que ouçam e estejam abertos a aprender com elas. Que se abram a questionar suas próprias suposições e a dinâmica de poder existente, e aprendam a abrir mão [do seu poder].
Além disso, eu recomendaria que busquem aprender com as pessoas que já estão fazendo esse trabalho, porque elas têm experiência, conhecimento e expertise. Se não quiserem criar seu próprio fundo, que apoiem os que já existem, porque já estão fazendo esse trabalho há muito tempo e podem continuar a apoiar a mudança sistêmica e a transformação que nós queremos ver.
*Essa entrevista foi originalmente publicada no site da London Funders: https://londonfunders.org.uk/latest/news/qa-jonathas-azevedo-funders-partners-change