Ilustração: Hanging in Imbalance – Bikki Tamang
Em um cenário de constantes ataques à democracia, direitos cerceados e redução dos espaços cívicos, a ampliação das doações a organizações da sociedade civil, movimentos, coletivos e lideranças é um dos caminhos para se fortalecer a luta por direitos e a democracia não só no Brasil, mas também em outros contextos do Sul Global.
No entanto, um conjunto expressivo de organizações e movimentos da sociedade civil, em sua maioria liderados por representantes de grupos minorizados, seguem enfrentando inúmeras barreiras no que se refere ao acesso a financiamento de forma irrestrita e flexível por parte de financiadores tanto nacionais, quanto internacionais. Burocratização, falta de confiança, alto nível de exigências, sistemas de monitoramento e avaliação desconectados dos territórios, imposição de agendas, racismo e outros tipos de discriminação são apenas alguns dos desafios enfrentados diariamente por organizações da sociedade civil e movimentos em todo o Sul Global em sua busca por recursos. Como resultado, esses grupos são sufocados e forçados a um ciclo de inanição que além de adoecer seus representantes, afasta-os/as dos processos de articulação com seus territórios, de transformação social e defesa da democracia.
A agenda da democratização de acessos a recursos é, assim, cara à Rede Comuá, cuja estratégia de incidência tem como um dos pilares a luta por um sistema de financiamento (nacional, regional e internacional) que doe mais e facilite o acesso a recursos para atores e atrizes da sociedade civil, os verdadeiros protagonistas da transformação social.
Neste sentido, a Rede Comuá se soma à campanha #TooSouthernToBeFunded, promovida pelo movimento #ShiftThePower, e convida organizações da filantropia brasileira a fortalecer a iniciativa pelo fim das regras de financiamento discriminatórias contra a sociedade civil do Sul Global:
Pelo fim das regras de financiamento discriminatórias contra a sociedade civil do Sul Global!
Assine nossa carta aberta aqui para pedir o fim do “apoio condicional” (tied aid) e de todas as práticas de financiamento discriminatórias contra o Sul Global.
Prezados membros do Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE),
Nós somos parte do movimento #ShiftThePower (#PoderParaAsComunidades), uma rede global de grupos da sociedade civil e organizações internacionais aliadas do campo de desenvolvimento internacional. Escrevemos ao CAD com uma preocupação urgente.
Durante muito tempo, os detalhes dentre as regras que regem o fluxo de recursos dos membros do CAD da OCDE para as organizações da sociedade civil (OSCs) do Sul Global foram abafados pela papelada e linguagem técnica, tornando as regras difíceis de compreender. Mesmo assim, analisamos esses fluxos de ajuda humanitária dos membros do CAD. Nossa análise revela desequilíbrios sistêmicos na distribuição de recursos para questões relacionadas a desenvolvimento (leia o relatório completo aqui ou seu resumo aqui, disponíveis apenas em inglês). Apesar da retórica que se compromete a apoiar a liderança e a sociedade civil do Sul, uma parte significativa dos recursos permanece não oficialmente vinculada a OSCs dos países membros do CAD, enquanto marginaliza a sociedade civil do Sul e beneficia desproporcionalmente as OSCs do Norte Global. Essa prática não apenas discrimina a sociedade civil do Sul Global, mas também enfraquece o espírito das recomendações do CAD sobre Desvinculação da Assistência Oficial ao Desenvolvimento de 2001 (DAC Recommendation on Untying Official Development Assistance of 2001).
Por exemplo, estamos cientes de uma cláusula pouco conhecida entre as Recomendações que permite que os governos do Norte Global considerem o financiamento de suas próprias OSCs como “incondicional” se for qualificado como um “apoio essencial”. Acreditamos que essa brecha, embora não infrinja nenhuma lei, também prejudica o espírito dos compromissos de apoio à sociedade civil do Sul Global. Além disso, ao restringir esses recursos apenas às OSCs do Norte, as práticas atuais de financiamento contribuem para perpetuar um sistema que prejudica o acesso aos direitos em regiões do Sul Global, já que essas práticas contribuem para a redução das do espaço cívico, um pilar importante do fortalecimento da democracia, que permite a participação social na garantia de direitos.
Além disso, nossa análise das práticas formais e informais que limitam o financiamento das OSCs do Sul Global em favor de organizações do Norte, incluindo OSCs e empresas privadas, revela uma série de suposições falsas que o CAD da OCDE fez sobre a sociedade civil do Sul. Esses preconceitos refletem uma falta de compreensão das OSCs do Sul e incluem:
- Capacidade: A suposição de que as OSCs do Sul Global não têm a capacidade de efetuar mudanças em suas comunidades é falha. Passamos décadas desenvolvendo nossa capacidade de entender e enfrentar os desafios locais, além de navegar pelas complexidades das instituições globais. Na verdade, muito do que o Norte Global considera “capacidade” tem pouca relação com as realidades locais.
- Confiança: A relação entre o CAD da OCDE e a sociedade civil do Sul Global tem sido marcada pela desconfiança. Não se confia na sociedade civil do Sul para assumir a liderança sobre como responder aos desafios locais. Ao continuar a manter um sistema no qual as OSCs do Sul devem sempre procurar as OSCs do Norte para obter financiamento, a OCDE alimenta um sistema semelhante ao “governo indireto”, implementado no período colonial de vários países.
- Presunção de culpa: Os membros do CAD da OCDE continuaram a restringir o financiamento às OSCs do Sul, em parte devido a uma presunção de culpa e fraude imposta às OSCs do Sul, que são consideradas culpadas até que provem sua inocência.
Pedimos ao CAD da OCDE e a seus membros que o façam imediatamente:
- Removam as barreiras legais e regulatórias para que mais financiamento direto seja transferido dos doadores do CAD da OCDE para as OSCs do Sul Global diretamente, sem restrições.
- Redefinam as políticas de apoio condicional (tied aid): Adotar uma definição mais inclusiva de apoio condicional, que reconheça e aborde os vieses implícitos que favorecem as OSCs baseadas nos países do CAD, deixando de definir como apoio incondicional o apoio básico apenas às OSCs do Norte.
- Aumentem a transparência: Implementar mecanismos para maior transparência no financiamento. Atualmente, não há transparência sistemática para rastrear quanto dos recursos que passam pelas OSCs do Norte acabam chegando ao Sul.
- Defendam reformas: Priorizar as vozes das comunidades que são mais afetadas pelas intervenções de desenvolvimento durante a tomada de decisões.
O movimento #ShiftThePower prevê um mundo em que os apoios financeiros ao desenvolvimento estejam enraizados nos princípios de igualdade, respeito mútuo e agência local. Estamos confiantes de que o CAD da OCDE pode desempenhar um papel fundamental para tornar essa visão uma realidade.
Esperamos ter um diálogo construtivo e estamos à disposição para discussões adicionais sobre essas questões críticas.
Movimento #ShiftThePower