Por Mônica C. Ribeiro
De 12 a 14 de abril, a Rede Comuá participou do 12º Congresso GIFE (Grupos, Institutos, Fundações e Empresas), que teve como tema Desafiando estruturas de desigualdades.
No primeiro dia, a diretora executiva da Comuá, Graciela Hopstein, mediou a mesa Filantropia comunitária: mobilização de atores diversos para a transformação. Integraram a mesa Larissa Amorim, da Casa Fluminense; Harley Henriques, do Fundo Positivo – ambos integrantes da Rede Comuá -; Jair Resende, da Fundação FEAC; e Vinicius Ahmar, do Instituto Arapyaú.
Na abertura da atividade, Graciela destacou a parceria que a Rede vem desenvolvendo com o GIFE desde 2018, no sentido de incidir sobre o ecossistema filantrópico pela adoção de práticas de filantropia comunitária e de grantmaking, e citou uma publicação, desenvolvida por meio desta parceria e que deve ser lançada neste ano, sobre como o investimento social privado pode fortalecer a filantropia comunitária.
“A filantropia comunitária está ligada a um conjunto de práticas. É preciso entender o papel que ela ocupa nos processos de transformação. Ela não é protagonista, acredita na potência das comunidades e chega para contribuir com processos já existentes nos territórios”, define Graciela.
A diretora executiva da Comuá apresentou o trabalho coletivo das 16 organizações membros da Rede, todas grantmakers, e a complexidade da filantropia comunitária que se plasmou no Brasil, que inclui fundos temáticos, fundações e fundos comunitários.
“Tem a ver com transferência de poder, como destaca o movimento #ShiftThePower. Mudança do eixo de poder. De acesso a recursos, de tomada de decisão. Para as organizações da Rede Comuá, é fundamental entender a desigualdade vinculada a acesso e garantia de direitos. Direitos são a chave para combater qualquer desigualdade”, contextualizou Graciela.
Rede lança Aliança de Fundos Territoriais
Larissa Amorim, coordenadora executiva da Casa Fluminense, apresentou o trabalho realizado pela organização, que completou dez anos em fevereiro.
Larissa anunciou, durante a mesa, a constituição da Aliança Territorial, criada no contexto da Rede Comuá a partir da articulação de sete organizações membro: Tabôa – fortalecimento comunitário, FunBEA (Fundo Brasileiro de Educação Ambiental), ICOM (Instituto Comunitário Grande Florianópolis), Instituto Comunitário Baixada Maranhense, Redes da Maré, Instituto Procomum e Casa Fluminense. O objetivo é promover articulação permanente e troca de experiências entre organizações de base territorial, buscando desenvolver estratégias e refletir sobre os desafios de captação para essas organizações.
“As organizações da Comuá envolvidas nessa estratégia, em 2021, tiveram atuação em 174 municípios, doaram R$ 3,17 milhões e apoiaram 936 projetos. Para enfrentar as estruturas de desigualdade, o recurso precisa chegar na ponta, nos territórios”, define.
A relação da filantropia comunitária com os diversos atores
Harley Henriques, fundador e diretor executivo do Fundo Positivo, destacou a trajetória do fundo com o apoio inicial do governo federal e o pioneirismo do trabalho no combate ao HIV/Aids e a importância do que ele define como advocacy dialógico das organizações da sociedade civil – que deu origem a importantes políticas públicas e legislações como a lei dos medicamentos genéricos e a política de tratamento antiviral.
“O Fundo Positivo financia seis redes LGBTQIA+, que fomentaram a criação de leis como a do nome social, casamento homoafetivo e criminalização da homofobia. Temos cooperação internacional, doações de fundações e especialmente de empresas, mas sempre no viés da saúde ou HIV/Aids. O apoio de empresas não vem para a causa LGBTQIA+. Uma população que movimenta muitos recursos para o turismo no país e mesmo assim não consegue doações.”
Harley destacou que os desafios são muitos, e que só trabalhando horizontalmente será possível quebrar as estruturas de desigualdade. “A filantropia que fazemos não é de ninguém em específico. É comunitária, coletiva. É importante identificar que o protagonismo está naqueles que estão no campo. No Fundo Positivo, toda a equipe é composta por pessoas LGBTQIA+. Damos espaços de representatividade e poder a essas pessoas. É preciso garantir visibilidade.”
A Fundação FEAC, membro do GIFE, atua no território da cidade de Campinas, em São Paulo, tendo recentemente ampliado o território de atuação para a Região Metropolitana de Campinas. Jair Resende, Superintendente Socioeducativo da FEAC, informou o grande número de organizações sociais com atuação na cidade já na década de 1950, e como a Fundação reuniu esse movimento social no território usando patrimônio de doação de um filantropo.
“Nosso principal recurso está ligado ao investimento imobiliário. Usamos esse recurso que a Fundação já tem para captar mais recursos com outras organizações e empresas. Empresas sediadas em Campinas, em vez de criarem institutos e fundações, começam a trabalhar com essas organizações sociais que já atuam no território. Buscamos, como grantmakers, fortalecer essas organizações.”
Jair lembrou a agilidade desse arranjo para fazer chegar recursos à população em situação de vulnerabilidade durante a pandemia. “Somos o canal onde o recurso chega, mas temos uma rede de cerca de 100 organizações no território fazendo esse recurso chegar onde precisa chegar.”
O Instituto Arapyaú, também membro do GIFE, tem investido em fundos e organizações comunitárias. Vinicius Ahmar, gerente de estratégia para desenvolvimento sustentável do Instituto, destacou a iniciativa envolvendo o cacau no território da Bahia.
“O Instituto passou a atuar de forma estruturada, a partir de diagnósticos participativos no território, entendendo vocações e o que precisava ser fomentado. Em um desses diagnósticos, escolhemos a atuação na cadeia do cacau, por entender que poderia desenvolver um pouco mais a região.”
O cultivo de cacau na Bahia, pontuou Vinicius, é feito predominantemente por agricultores familiares no modo “cabruca” – cultivo em meio à Mata Atlântica. “A cadeia é viável economicamente, traz inclusão social e mantém a floresta no lugar. Vieram então, ao priorizarmos essa cadeia, desafios e alavancas para começarmos o trabalho. Mas não avançamos sozinhos. Fomos para a produção de conhecimento e fomento, em parceria com o Funbio (Fundo Brasileiro para a Biodiversidade) e outros, para fomentar e incubar a fundação de organizações chave para o território, como a Tabôa, por exemplo, e o Centro de Inovação do Cacau. Identificamos gargalos e fomentamos organizações e movimentos para que esses gargalos sejam endereçados.”
Vinicius destacou ainda a importância do uso estratégico dos recursos da filantropia para alavancar outros investimentos e a importância de ouvir o território e entender como é possível trabalhar junto em questões complexas.
“A ação é fomentar um território que é capaz de pensar soluções por ele mesmo. Estamos ali muito mais como alavancadores do que alguém que é necessário para o desenvolvimento local.”
Organizações da Rede Comuá participaram de várias mesas do Congresso
Além da mesa sobre filantropia comunitária, outros temas contaram com a participação integrantes das organizações membro da rede ao longo do Congresso, tais como filantropia latino-americana; grantmaking para superar desigualdades; democracia e interseccionalidades de gênero, raça e clima; inclusão produtiva e trabalho digno; desafios regulatórios do financiamento e da participação da sociedade civil.
Representantes da Brazil Foundation, Elas+, Baobá, Fundo Brasil, Fundo Casa e Instituto Comunitário Baixada Maranhense estiveram nas mesas promovidas para debater estes temas ao longo dos três dias de congresso.
Uma das questões colocadas para debate foi se a filantropia está preparada para a equidade racial. Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá, destacou três pontos a serem observados nessa resposta: a qualificação da análise que as instituições faz e como se posiciona a partir dessa análise; o tipo de critério utilizado para fazer as escolhas; e o propósito das tarefas que as organizações filantrópicas assumem.
“Precisamos ter nitidez para entender e separar se nossa motivação na atuação filantrópica se dá em relação a uma causa, um tema ou um público. Há uma confusão entre esses conceitos. Por exemplo, atender pessoas negras não é necessariamente enfrentar o racismo. Há uma confusão entre público e causa. Nem todo atendimento a pessoa negra é necessariamente enfrentamento ao racismo. E o atendimento a pessoas negras pode, inclusive, ser instrumento de manutenção do racismo. Isso não desqualifica o que cada uma das nossas instituições faz em relação a isso, mas é preciso que a gente reflita.”
Giovanni pontuou a importância dos critérios e a responsabilidade das organizações filantrópicas quanto a essa questão: “O doador exerce o poder. Nós enquanto instituições filantrópicas temos que ter responsabilidade, porque quando fazemos doações, e fazemos escolhas, interferimos no ecossistema e no ambiente no qual os movimentos sociais estão organizados. E precisamos respeitar isso. A escolha é inevitável, mas o que eu questiono aqui é a falta de transparência ou ausência de critérios.E aí fica um convite para as instituições que atuam na filantropia, para que se posicionem. Precisamos entender a filantropia como instrumento de financiamento da transformação social, mas que possa cumprir esse processo com a maior transparência possível. A transformação vai se dar pelo reconhecimento de que a força motriz dessa transformação é o movimento social negro.”
Amália Fischer, coordenadora geral do Fundo Elas+ Doar para Transformar, destacou, na mesa sobre democracia e interseccionalidades de gênero, raça e clima, que não existe democracia sem equidade racial, de gênero e étnica. “Essa democracia que temos está em crise, e a autocracia nos afetou a todas, todes e todos. E isso não aconteceu só no Brasil, mas também em outros países da América Latina e na Europa.Temos que estar abertos a esse neofascismo que está hoje no mundo e investigar porque ele não morreu. Somos produtos da colonialidade, e pouco se fala da Santa Inquisição, que queimou mulheres, indígenas, o povo que chamamos de ciganos, e são o povo Roma, durante muitos séculos. Brasil e México deixaram de assinar a Santa Inquisição no final do século XIX. Isso influenciou sim o século XX de alguma maneira. Isso tem a ver com a colonização, com escravizar as pessoas, até chegar aos dias de hoje.”
Outro ponto destacado por Amália é a forma como as mulheres usam o dinheiro, investindo nas comunidades e nos territórios. “Isso é uma forma de fazer filantropia. Vimos isso também na pandemia. Organizações que apoiamos usavam dinheiro como precisavam, mas apoiavam a comunidade do lado, porque não havia recurso. É importante que comecemos a falar de uma outra lógica da filantropia e do investimento social.”
“As mulheres estão sofrendo com as mudanças climáticas. Quando foram desabrigadas e seguiram com crianças para abrigos, sofreram violência doméstica. As mudanças climáticas têm consequências diretas nas mulheres e nas crianças, e temos que estar com o olho aberto para que essa interseccionalidade exista. Não pensem só na conservação e preservação do meio ambiente. Em todos esses espaços existem seres humanos e não humanos, e nós temos que apoiar quem está nos protegendo, e nesse caso são muitos dos povos originários no mundo”, concluiu.
Fernanda Lopes, diretora de programa do Fundo Baobá para Equidade Racial, também reforçou a importância dessa interseccionalidade: “A agenda climática é necessária, mas não podemos fazer as organizações vestirem a roupa do clima para buscarem recursos. As questões reais do clima atingem os reais ativos do mundo, as pessoas. Essa filantropia, centrada nos ativos que são as pessoas, precisa ter responsabilidade com aqueles que vivenciam os efeitos do clima de forma vulnerável e desigual. Até o início dos anos 2000, tudo estava focado no impacto ambiental, físico. Hoje as pessoas passam a figurar num lugar que ainda é muito periférico. As injustiças climáticas alimentam e são alimentadas pelas injustiças sociais e raciais. Todos sofrem com o clima, mas tem gente que sofre muito mais.”
Nessa Purper, gestora de programas do Fundo Casa Socioambiental, completou a fala destacando a aliança GAGGA (Global Alliance for Green and Gender Action), que reúne o poder coletivo dos movimentos de gênero, clima e justiça ambiental em todo o mundo. Os integrantes da aliança fornecem doações e apoio para fortalecimento de capacidade para organizações e redes de direitos das mulheres e justiça ambiental de mais de 30 países na África, Ásia, Europa e América Latina. O Fundo Casa é parte da rede.
“O clima afeta a todos, mas é diferente quando alguém pode fugir de um problema climático
Nessa, Fundo Casa – O clima afeta a todos, mas é diferente quando alguém pode fugir de um lugar de helicóptero ou tem sua vida soterrada por um deslizamento. A gente não pode falar de justiça climática sem falar de raça e gênero. Uma das funções que tem os fundos que trabalham com filantropia de justiça socioambiental é desafiar as estruturas de poder. Quem sabe melhor a solução é quem está na base. É onde o recurso precisa chegar, onde a filantropia pode fazer mais.”