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Reflexões sobre a instituição do cuidado coletivo na mudança sistêmica

Por Ese Emerhi, Tecelã da Rede Global do GFCF

Terminei o ano de 2022 com um problema de saúde e passei a maior parte de 2023 pensando sobre o conceito do cuidado coletivo e solidariedade na construção de movimentos. Como parte da minha reflexão, estou lendo Rest Is Resistance: A Manifesto, de Tricia Hersey, em que ela sustenta que o descanso deve ser visto como uma forma de resistência política radical e que “elevar o descanso a partir de uma ética de cuidado comunitário implica interromper a cultura dominante e, ao mesmo tempo, devolver o poder às pessoas, que é seu lugar de direito”. Embora a mensagem de Hersey seja dirigida especificamente às comunidades negras dos Estados Unidos e rechace a cultura de trabalho incessante preponderante na sociedade, ela ressoa em mim no que se refere à necessidade de uma mudança de mentalidade cultural nos campos filantrópico e de desenvolvimento internacional, e à questão do porquê o descanso é importante na luta pela libertação e por uma mudança sistêmica mais ampla.

Assim como Hersey, acredito que a promoção do cuidado coletivo para ativistas – que impelem mudanças tão necessárias – é essencial para a sustentabilidade e o sucesso do movimento solidário. Em meu trabalho no Global Fund for Community Foundations (GFCF), com parceiros da Palestina ao Brasil, de Uganda a Burkina Faso, a noção de cuidado – entender as pessoas como o ativo mais importante – é fundamental para promover mudanças. O trabalho de repensar e conceber um novo sistema de desenvolvimento exige recursos e energias que vão além do dinheiro e de mero compromisso profissional. Ativistas que sofrem de esgotamento e exaustão serão menos eficazes no desenvolvimento de soluções inovadoras capazes de sustentar os movimentos sociais.

Nos últimos meses, venho conversando com colegas da África sobre o conceito de autocuidado e solidariedade no contexto de repensar o atual sistema assistencial. Nessas conversas, há um consenso geral de que “Sim, o autocuidado é importante”, além de uma confirmação silenciosa de que “Não praticamos muito bem o autocuidado enquanto setor”. Em um blog de 2022 (disponível em inglês), a bolsista do movimento #ShiftThePower, Eme Iniekung, da GivingTuesday, e Elizaphan Ogechi, da Nguzo Africa Community Foundation, resumiram sucintamente o assunto afirmando: “Nós [o setor filantrópico] estamos sempre querendo fazer tantas coisas ao mesmo tempo que acabamos nos esquecendo de nós.” Os participantes de um encontro organizado recentemente pelo GFCF com parceiros [1] sobre o movimento #ShiftThePower e a filantropia comunitária, do qual participei em Katmandu, Nepal, em junho de 2023, ecoaram as mesmas impressões.

Participantes do encontro regional do movimento #ShiftThePower realizado em Kathmandu na data de 1º de junho de 2023

Então, o que fazer daqui para frente?

No encontro no Nepal, Hari Sharma, Diretor Executivo da Purak Asia e ex-assessor político do primeiro presidente do Nepal, sugeriu que uma forma de começar a centralizar o cuidado coletivo como um conceito político é promover mais diálogos intergeracionais entre ativistas de movimentos sociais. Ele explica:

O que acontece quando nós, que estamos inseridos no sistema há décadas – que iniciamos movimentos sociais a partir de convicções pessoais como voluntários e acabamos nos “profissionalizando” ao longo do caminho, que fomos fundadores de pequenas e grandes organizações – ficamos tão cansados que não conseguimos mais ter novas ideias? Ocorre uma espécie de morte em muitos níveis, e ninguém está falando sobre isso. Para mim, o autocuidado é efetivamente uma autorregeneração e o que acontece com essas organizações quando os líderes vão embora. Em geral, quando os líderes saem das organizações, eles se sentem de certa forma abandonados, pois todos esses anos de trabalho árduo simplesmente acabam. Aonde devem ir para se reconectar consigo mesmos após darem tudo o que tinham? Precisamos pensar não apenas em trazer e apoiar novos ativistas para o trabalho comunitário, mas também em como cuidar daqueles que precisam sair”. 

Outro caminho possível é pensar em como aplicar as lições do trabalho dos fundos e movimentos feministas, que vêm refletindo profundamente sobre o conceito de cuidado – autocuidado, cuidado coletivo e solidariedade do movimento – e como ele pode ser colocado de forma mais eficaz no centro de uma pauta para mudança de sistemas.

Para instituir o cuidado de forma realmente eficaz, também precisamos de redes de apoio dedicadas. Ter a capacidade de obter recursos, reabastecer e nutrir nossos movimentos deve, em minha opinião, ser um pilar de sustentação da reavaliação de um sistema eficaz para o futuro.

Sem dúvida, há muito mais a explorar sobre esse assunto. Refletindo sobre como podemos continuar a ter essas conversas de forma mais ampla e estratégica, e em como podemos criar espaços de aprendizado e experimentação com novas ideias sobre o cuidado coletivo, convido outras pessoas a explorarem mais essas questões (entre muitas outras) com o GFCF durante a preparação da Cúpula Global do movimento #ShiftThePower e durante a sua realização, em Bogotá, em dezembro.

[1] Accountability Lab Nepal, NEAR Network, Peace Direct, Purak Asia and Tewa.

Artigo publicado originalmente em inglês no blog do Global Fund for Community Foundations

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