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Semeando os valores da filantropia negra: a pandemia e as ações do Fundo Baobá

Por Fernanda Lopes

Em 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde – OMS declarou como pandemia a doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). Em 3 de abril de 2020, o Fundo Baobá para a Equidade Racial – primeiro e único fundo filantrópico que mobiliza pessoas e recursos, no Brasil e no exterior, para o apoio exclusivo a projetos e ações de promoção da equidade racial para a população negra no Brasil, mobilizou-se para publicar e divulgar amplamente o Edital de Doações Emergenciais de Combate ao Coronavírus. Naquele momento, quando nos questionaram sobre o porquê de realizar um edital, explicamos que, em nossa avaliação, o edital permitiria mapear iniciativas individuais ou de organizações que buscassem responder, da melhor forma, às necessidades mais imediatas da comunidade, assumindo um risco menor de concentrar o apoio em grupos com mais acesso ao ecossistema filantrópico.

Outro aspecto que destacamos e à época foi pouco compreendido: era nítido que a população negra seria especialmente afetada pelas crises sanitária e econômica. A sobre-exposição ao vírus era derivada do menor acesso à informação, ações e insumos de prevenção, atenção e tratamento em saúde; da impossibilidade de viver o distanciamento social ou incorporar a experiência de home office à rotina laboral. Ou seja, para o Baobá, além de prevenir a infecção, o adoecimento e, quiçá a morte, não poderíamos restringir o apoio à doação de cestas básicas, a principal ação filantrópica naquele momento. Em jogo estava o direito a viver com dignidade. Eram muitas as fomes.

Defendíamos que, se fôssemos capazes de priorizar grupos potencialmente mais expostos à infecção estimulando ações preventivas; se tivéssemos um formulário simples, solicitando uma análise de situação e uma proposta de ação realística e elaborada a partir das principais necessidades e lacunas identificadas; se deixássemos explícitos os critérios de seleção; se houvesse uma estratégia eficiente de comunicação, mobilização e engajamento, poderíamos receber propostas voltadas para garantir o direito básico à alimentação e à prevenção, associadas às ações educativas, de combate às informações e notícias falsas e até mesmo geração de renda.

Os relatos de algumas das líderes apoiadas individualmente no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco sobre todas as atividades que estavam realizando em suas comunidades nos fortaleceu na defesa de que seria estratégico, para além de apoiar organizações, também abrir o edital para apoio individual. Se estas pessoas tivessem atuação comunitária ou compromisso com o coletivo, se fossem membros de organizações da sociedade civil ou movimentos sociais, poderiam implementar seus planos de ação com mais liberdade e agilidade, inclusive para constituir parcerias e isso poderia ser um importante valor agregado.

Esta avaliação foi corretíssima. Em duas semanas após o lançamento do edital, foram recebidas 1037 propostas, apresentadas por indivíduos (651), por organizações (386). A seleção considerou coerência, consistência e sinergia da proposta frente aos objetivos do edital, enquanto o critério de relevância foi avaliado, prioritariamente, com base nos dados epidemiológicos. Os repasses, de R$ 2500,00 (dois mil e quinhentos reais) foram feitos em três lotes. O prazo entre o envio da proposta e a doação variou de 12 a 33 dias.

Entre as propostas selecionadas, 215 de indivíduos e 135 de organizações. As iniciativas incluíram ações dirigidas à população negra no geral, comunidades periféricas, idosos, população em situação de rua, prostitutas, travestis e transgêneres, quilombolas, indígenas, migrantes e refugiados, crianças matriculadas nos primeiros anos do ciclo básico. Aquisição/fabricação e distribuição de insumos de prevenção (máscaras, produtos de higiene pessoal ou limpeza); aquisição/distribuição de cestas básicas ou marmitas; produção de conteúdos e disseminação de informações sobre a Covid-19 foram as principais atividades realizadas nos territórios contemplados, fossem eles urbanos ou rurais, centrais ou periféricos, com um número crescente de casos confirmados ou não.

Uma das nossas preocupações era contribuir, de alguma forma, para “quebrar” a cadeia de transmissão do vírus e assim evitar novas infecções, por isso a tempestividade no lançamento do edital; o compromisso com a desburocratização do processo; a sistematização e análise de informações disponibilizadas pelos donatários nos relatórios e estudo de caso fosse para subsidiar decisões futuras e ajustes na resposta institucional à pandemia ou produzir e compartilhar conhecimentos com membros da Rede de Filantropia para Justiça Social e outros atores.

De modo geral, os donatários indicaram ter recebido informações sobre o edital por meio de suas redes pessoais, amigos e lideranças parceiras, grupos e redes compostos por coletivos, ONGs e associações. O formulário de inscrição e os relatórios foram considerados simples e intuitivos. Algumas recomendações nos foram apresentadas em relação à importância da orientação prévia sobre coleta de dados demográficos dos beneficiários indiretos (sexo, idade, raça/cor); ampliação do tempo de implementação das atividades, execução dos recursos e prestação de contas; orientações gerais transmitidas em reuniões ou outros meios, que não apenas por e-mail, para os donatários.

No edital de apoio à primeira infância no contexto da pandemia, lançado em julho de 2020, foram 56 as iniciativas selecionadas. As doações foram exclusivas para indivíduos. Como fazemos com os editais comuns (fora do contexto de emergência) tivemos encontros de orientações gerais antes de contratualizar; providenciamos assessoria técnica para revisão dos planos de ação antes de iniciar a implementação; os prazos para execução dos recursos e prestação de contas foram maiores; todos foram informados sobre a importância de detalhar as características sociodemográficas dos beneficiários de suas ações. Além disso, negociamos com os financiadores que, após a análise dos relatórios e realização dos estudos de casos, haverá uma segunda onda de apoios com vistas a ampliar o escopo das ações e/ou número de beneficiários.

Sem exceções, os donatários indicaram ter alcançado os resultados esperados e destacaram que ao serem apoiados pelo Baobá foram reconhecidos como “dignos de confiança”. Maior mobilização comunitária e engajamento de parceiros foram destacados como resultados inesperados. Também houve relatos de que, após terem sido selecionados, realizado as atividades e mobilizado parceiros, sentiram-se preparados para concorrer em outros editais, vários tiveram sucesso. Com o apoio do Fundo Baobá, os donatários individuais e as organizações relataram ter beneficiado, prioritariamente, pessoas negras. Entre aqueles que receberam apoio individual, 80,5% beneficiaram indiretamente entre 100 e 500 pessoas; 18,3% beneficiaram 501 ou mais. Um por cento não informou. No conjunto das organizações apoiadas, 67% beneficiaram entre 100 e 500 pessoas; 32,1% alcançaram 501 pessoas ou mais; o restante não nos informou.

As ações de sistematização das medidas de investimento realizadas pelo Fundo Baobá nesse contexto, contaram o apoio da Rede de Filantropia para a Justiça Social, no âmbito do projeto Fundo Baobá e a resposta emergencial: sistematizando informações e produzindo conhecimentos, dentro do Programa de Apoio da RFJS. Com especial atenção aos editais emergenciais, o desafio era garantir a plena execução dos editais apresentados acima, garantindo a análise e sistematização nesse contexto enquanto peças chave para subsidiar processos de tomada de decisão seja no que diz respeito à doação ou à captação de recursos, enquanto estivesse declarada a emergência sanitária de importância internacional.

O esforço empreendido para buscar mais informações sobre as ações realizadas; estabelecer espaços de escuta e valorização das conquistas e pequenas mudanças deflagradas pelos projetos e, ao mesmo tempo, disseminar as boas práticas e lições aprendidas; para além de ter sido reconhecido pelos donatários como o compromisso do Fundo Baobá com um fazer filantrópico diferenciado, possibilitou aprimorar nossos processos de trabalho e tomada de decisão e demonstrar, aos investidores sociais privados, nossa eficiência como grantmakers.

Em um contexto de agravamento da pobreza, restrições no acesso a bens e serviços, ampliação das iniquidades sociorraciais e sobre mortalidade da população negra pela violência racial sistêmica e por complicações ligadas à covid-19, o apoio da Rede de Filantropia para a Justiça Social para fortalecer as capacidades do Baobá em sistematizar informações, produzir evidências para subsidiar os processos de tomada de decisão e ainda disseminar conhecimentos foi, para além de oportuno, muito estratégico.


Fernanda Lopes é diretora de programa do Fundo Baobá para Equidade Racial

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