Imagem: parte do quadro que o grupo utilizou para construir uma agenda coletiva. O cartão azul diz: “Como medir/valorizar: senso de pertencimento? autonomia? cuidado + gentileza?”
Por: Yasmin Morais*
Entre os dias 2 e 8 de julho, estive em Bali, na Indonésia, para participar do encontro da Comunidade de Práticas Medir o que Importa, como parte do Movimento #ShiftThePower (#PoderParaAsComunidades).
O motivo do encontro foi aprofundar as reflexões que temos tido a respeito do sistema vigente de Monitoramento e Avaliação (MeA) e trazer luz às alternativas que temos criado a ele. As conversas que tivemos implicam muitos temas, emoções, dúvidas, esperanças. Hoje, escolhi falar sobre um dos temas, central para compreender o que queremos dizer com “medir o que importa”: a subjetividade que carregamos em tudo que fazemos, e que influencia a forma como nos relacionamos com nossa prática e a comunicamos.
Em geral, o sistema tradicional de MeA nos incentiva a deixar de lado essas subjetividades. Em vez de incorporá-las aos nossos processos avaliativos, devemos isolá-las, ignorá-las, através de processos frios e unicamente racionais e lineares. Processos que, muitas vezes, simplificam as nossas histórias para fazê-las caber em números, que, por sua vez, alimentam metas que nem sequer são nossas.
Isso revela uma lacuna entre o que é esperado por financiadores e a forma que enxergamos as transformações que estamos fomentando em nossas comunidades. Pode o sentimento de confiança coletiva ou de pertencimento ser medido por métricas que não são as nossas? Podemos capturar vínculos genuínos por meio de definições importadas? Pode uma revolução ser inserida em indicadores de curto, médio e longo prazo?
Na Rede Comuá, temos reavaliado nosso sistema de MeA de forma a melhor alinhá-lo com os princípios de Medir o que Importa. Percebemos que essa prática amplia a nossa visão da transformação que temos buscado, além de nomear alguns processos que já realizamos há tempos e de encorajar nossos pares a fazer o mesmo. Conversando com participantes da atual turma do Programa Saberes, por exemplo, notamos um destaque para a noção de pertencimento ao campo da filantropia comunitária e de justiça social, sentimento que não era comum a muitas das pessoas participantes antes de integrar o Programa, e que não cabe nas métricas quantitativas que costumamos monitorar. Da mesma forma, ao reavaliar a maneira como medimos o engajamento de membros na Rede, notamos que os processos de construção de voz coletiva, tão importantes para a coesão entre membros da Rede e para nossa incidência coletiva, podem ser mais diretamente incluídos nas nossas práticas de avaliação. Notamos também que, mais do que medir quantidades de encontros, presenças, menções, alcances, etc, não podemos perder de vista o sentido de tudo isso: que motivações, sentimentos, intenções, mudanças essas métricas querem trazer? E se elas não são suficientes, que alternativas temos para criar processos de MeA que realmente reflitam quem somos, o que sentimos e o que fazemos?
O que “importa” medir, portanto, é o que verdadeiramente tem sentido para quem participa do processo de coleta, interpretação e comunicação dos dados coletados e sistematizados. Esse sentido carrega, em si, dois significados: direção e sentimento. O primeiro tem a ver com a jornada de cada comunidade diante da transformação que quer causar. Refletir sobre o próprio fazer deveria ser capaz de dar direcionamento a ele. A partir do que enxergamos agora, para onde queremos ir? O caminho que estamos trilhando nos aproxima do que queremos para a nossa comunidade? O que falta para avistar esse horizonte de forma mais nítida?
O segundo significado tem a ver com o conceito de “Sentipensar”, popularizado por Fals Borda (1987) a partir das experiências de comunidades pesqueiras colombianas, para descrever uma forma de conhecimento que integra tanto a razão quanto as emoções, reconhecendo a importância das experiências vividas, dos sentimentos e das relações sociais na construção do conhecimento e na tomada de decisões. Sentipensar é “pensar con el corazón y sentir con la cabeza”. É integrar a reflexão crítica e a experiência emocional, reconhecendo que nossas ações e decisões são influenciadas não apenas pela lógica fria, mas também pela nossa vivência pessoal e pelas emoções que experimentamos. Ao aplicarmos o sentipensar em nossos processos de MeA, estamos reconhecendo que as transformações sociais e comunitárias não podem ser reduzidas a simples indicadores quantitativos, mas devem incluir uma compreensão mais profunda das relações humanas, dos valores culturais e das dinâmicas de poder que moldam as experiências das pessoas. É um convite para uma avaliação mais sensível e empática, que verdadeiramente reflita a riqueza e a diversidade das experiências humanas envolvidas nos processos de transformação social e comunitária.
Na medida em que amadureço essas reflexões e as ponho em palavras, nasceu-me um poema, que compartilho aqui.
sentido
achatamos as nossas histórias
pra caber nas métricas
nas linhas
nos tempos
nas tabelas
que de tão lógicas
perdem a cor
e de tão frias
perdem o sentido
perdem o sentir
a quem isso importa?
quando a nossa coragem
não cabe nessas réguas
a nossa construção
tem um outro ritmo
a nossa revolução
não cumpre etapas
não acaba com o ano fiscal
tomemos conta das planilhas!
as refaçamos
as transformemos
¡sentipensemos!
me transformo na medida em que observo
faço parte da transformação que reporto
como não me enxergar em quem escuto?
torno-me espelho
admito que me misturo
admito que me afeto
mesclo minhas cores com as suas
minhas dúvidas e angústias
com as esperanças que plantamos
as dores e as lutas
e o resultado
não é um número
e nem uma história única
não cabe em relatórios
e nem no próprio tempo
é passado, é presente e é futuro
o resultado
é inacabado
inconstante
impróprio
é sentido
que pulsa
e que nos guia
pra mais perto de nós
Fontes:
Fals Borda y Rodríguez Brandao C. (1987) Investigación Participativa. Montevideo: La
Banda Oriental
*Yasmin Morais é graduada em Relações Internacionais pela University of Boston/Universidade Anhembi Morumbi e mestre em Poder, Participação e Mudança Social pelo Institute of Development Studies. Atualmente, é Assessora de Programas na Rede Comuá.