Por Charles Keidan
No final do ano passado, tive o privilégio de falar em um painel com colegas da filantropia de vários lugares do mundo organizado no contexto do Congresso GIFE – uma associação de fundações filantrópicas no Brasil[1].
O painel explorou o futuro da filantropia. Perto do final, nossa moderadora Naila Farouky, do Arab Foundations Forum, pediu que compartilhássemos nossas visões pessoais sobre a filantropia – o que gostaríamos de ver acontecer em nosso campo.
Durante a discussão, compartilhei cinco ideias que acredito que nosso setor devia levar em conta quando pensamos no que o futuro reserva para a filantropia. Então, escrevi essas ideias neste texto como parte de uma série paneuropeia para pensar o que vem por aí na filantropia.
Então, eis aqui minha visão para o futuro da filantropia:
1. Fazer uma transformação completa na forma como as fundações avaliam e realizam seus investimentos, bem como suas políticas de investimento
Esta pode ser considerada a questão mais urgente para a filantropia, aquela em que mudanças são mais necessárias e podem fazer uma diferença. A maior parte do capital filantrópico – US$ 1,5 trilhão – está em fundos cuja administração e investimento passa por mercados financeiros internacionais de maneiras que às vezes contradizem a própria missão dessas fundações.
Os movimentos sociais do tipo que vemos emergir nos últimos anos estão – quase por definição – na linha de frente das mudanças sociais e políticas, nos mostrando a direção. Por que não vemos mais da filantropia indo no mesmo caminho?
O exemplo mais óbvio é o caso do clima: uma fundação pode financiar esforços para combater as mudanças climáticas e o aquecimento global, enquanto ao mesmo tempo investe em combustíveis fósseis. Bem, uma fundação pode ter boas razões e argumentos para tal. Mas eu gostaria, no mínimo, de ver essas fundações explicarem as justificativas por trás de suas políticas de investimento, bem como serem bem mais transparentes a respeito das administradoras que elas usam para gerenciar seus recursos, o quanto elas pagam para seus gerentes e consultores de investimentos, e como elas chegaram a definir as abordagens que elas adotam para isso. Vale notar que os trabalhadores mais bem pagos no setor beneficente no Reino Unido são, até onde sei, dois investidores do Wellcome Trust, Peter Gray e Nick Moakes. De acordo com a ThirdSector, cada um deles recebeu £ 4,5 milhões por seu sucesso em aumentar a receita dos fundos dedicados daquela fundação. Eles conseguiram isso, em parte, por terem investido recursos do Wellcome Trust em combustíveis fósseis, enquanto a fundação estava simultaneamente desenvolvendo planos para gastar milhões no combate ao aquecimento global. Tais escolhas merecem escrutínio, e por boas razões.
2. Precisamos de uma agenda para a filantropia que esteja ancorada na justiça e na justiça social em termos de raça, classe, clima e gênero
Esta agenda não é apenas externa, no sentido de para onde as financiadoras direcionam seu dinheiro, mas também uma agenda interna, a respeito das práticas e composição das próprias fundações.
Isso significa examinar a representação de pessoas negras e não brancas, bem como de mulheres, nas posições mais altas nas carreiras das fundações e seus conselhos. Ainda que haja progressos, por que é que já em 2018 apenas uma das 35 maiores fundações na Alemanha tinha uma CEO mulher?
Para trazer outro exemplo de como a concentração de poder contradiz a justiça, pensemos na fundação filantrópica mais poderosa do mundo, a Bill & Melinda Gates Foundation. Este grupo gasta mais de US$ 4 bilhões por ano, mas seu nível mais alto de gestão inclui apenas os curadores Bill Gates, Melinda Gates e Warren Buffett. Qualquer pessoa que se preocupe com a justiça no setor filantrópico deveria se sentir compelido a questioná-los acerca da composição desse conselho e se uma quantidade tão grande de recursos deveria ser controlada por apenas três pessoas. Poderíamos argumentar que é a fortuna deles, ou que são fortunas que foram doadas para eles, ou que quantias ainda maiores são controladas privadamente por eles e outros bilionários. Mas falando em termos de justiça, algo que muitos filantropos diriam que é um objetivo importante em sua filantropia, essas são questões justas que vão muito além da Fundação Gates e seu nada extenso conselho de curadores.
3. Fundações progressistas precisam financiar e dar apoio aos movimentos sociais
Com frequência se diz que a filantropia faz o seu melhor quando se arrisca. Então, por que não há mais fundações filantrópicas progressistas apoiando movimentos sociais? Estes correspondem a menos de 0,5% dos gastos totais das fundações, de acordo com dados compartilhados pela Candid em uma edição da Alliance sobre a relação entre o setor filantrópico e os movimentos sociais.
Os movimentos sociais do tipo que vemos emergir nos últimos anos estão – quase por definição – na linha de frente das mudanças sociais e políticas, nos mostrando a direção destas. Por que não vemos mais da filantropia indo no mesmo caminho?
É claro, os movimentos sociais refletem diferentes orientações políticas. Você pode gostar de um movimento social, eu posso gostar de outro, e eles podem estar fazendo ou promovendo coisas opostas. Mas se a filantropia pretende ser relevante para sociedade, para a construção do futuro, não conseguiremos atingir esse objetivo sem um engajamento mais efetivo com os movimentos sociais do nosso tempo.
Claro, devemos reconhecer algumas tensões óbvias aqui. A independência das fundações lhes permite o capricho de injetar dinheiro em certas causas sem maiores questões. Em resumo, elas não são particularmente cobradas por suas decisões – não em comparação com políticos democraticamente eleitos, certamente. Também há riscos para os movimentos sociais, que podem acabar se vendo cada vez mais próximos de funcionar como ONGs, de maneira a assegurar seu financiamento. Mas esta é outra razão pela qual profundas transformações nas práticas de financiamento são necessárias.
4. O financiamento básico deve ser o padrão – uma nova ortodoxia para a filantropia
Aqui, a realidade atual deveria ser invertida. Financiadores devem fornecer financiamento básico (core funding) irrestrito e plurianual como padrão – algo que a maioria das organizações sem fins lucrativos vem pedindo há muito tempo. Quando o financiamento básico não for oferecido, então a norma deveria ser os financiadores explicarem por que outro tipo de financiamento se justificava, dadas as circunstâncias.
Essa guinada para o financiamento básico deve ser acompanhada por uma democratização das práticas de financiamento. O financiamento participativo – incluindo pessoas afetadas pelo processo de tomada de decisão sobre essa concessão de recursos – é um caminho promissor, mas não suficiente.
Ainda que a filantropia permaneça uma empreitada privada e por vezes opaca, embora realizada para o benefício público, precisamos investir mais na capacidade de nossas mídias para compreender e oferecer uma cobertura sobre o seu poder – de uma forma construtiva, atenta a nuances e pautada em evidências.
Eu iria além, solicitando aos financiadores que incluam seus beneficiários não apenas nos painéis de especialistas, mas também nos próprios conselhos de suas fundações. Isso mudaria a dinâmica de poder na filantropia de maneira significativa, ao quebrar as barreiras entre financiador e beneficiário, colocando este último no coração do processo decisório.
Eu levaria essa revolução nas práticas de financiamento ainda mais longe com a criação de um critério segundo o qual contratos formais de financiamento e a correspondência relacionada (não apenas os valores dos financiamentos) deveriam ser acessíveis publicamente – um princípio de liberdade de informação para a filantropia, de maneira a jogar uma luz sobre a verdadeira natureza dos contratos e relações de financiamento.
Publicar contratos de financiamento e a correspondência entre filantropos e o setor das artes e da educação superior poderia ser particularmente útil para abrir o mundo elitizado e rarefeito das grandes doações. Ter que contar com correspondências vazadas de casos extraordinários carrega o risco de ameaçar a confiança na filantropia, ao fazer esses exemplos parecerem a norma e não a exceção.
5. Criar mais espaços para confrontar o poder com a verdade
Ainda que a filantropia permaneça uma empreitada privada e por vezes opaca, embora realizada para o benefício público, precisamos investir mais na capacidade de nossas mídias para compreender e oferecer uma cobertura sobre o seu poder – de uma forma construtiva, atenta a nuances e pautada em evidências.
E é aí que entra a infraestrutura de comunicação para a filantropia. Não apenas para nós na Alliance, mas em publicações, revistas e no jornalismo filantrópico ao redor do mundo, nós precisamos investir em capacidade editorial para continuar fazendo perguntas. Os mecanismos de feedback necessários para a boa saúde do setor precisam ser construídos, em vez de pressupormos que eles vão simplesmente acontecer.
A minha preocupação é que a distribuição da infraestrutura de filantropia está muito desequilibrada – 80% dos financiamentos de estrutura estão nos Estados Unidos, de acordo com uma estimativa da WINGS. Claro, essa por si só é uma boa razão para que financiadores fora dos EUA construam uma infraestrutura filantrópica global. Mas os financiadores estadunidenses voltados para o contexto internacional também têm a obrigação de prestar atenção nas lacunas. O desenvolvimento de mídias focadas na filantropia é um caso relevante. Financiadores nos Estados Unidos deram um grande estímulo para esses espaços ao financiarem o US Chronicle of Philanthropy de uma forma que outros meios no resto do mundo poderiam apenas sonhar, e isso é uma coisa boa. Mas os desequilíbrios entre os Estados Unidos e outros lugares dificultam que um campo filantrópico mais equilibrado possa emergir.
No final das contas, todos nós temos a oportunidade – e alguns diriam a responsabilidade – de questionar a nós mesmos e nosso compromisso em cumprir a promessa da filantropia. Todos nós podemos ser aquele amigo crítico de nosso setor, mostrando um espelho para o nosso campo e ao mesmo tempo evitando as armadilhas duplas do cinismo desnecessário ou da celebração acrítica.
Como Brad Smith comentou no painel do GIFE, “pouquíssimas fundações alcançam os padrões delineados nestes cinco pontos”. Mas ele também notou que os governos e o mercado tampouco são perfeitos. A conclusão é que essas imperfeições são incentivos para melhorar, não razões para abandonar a esperança. Imperfeições podem ser superadas e eu espero que essas medidas radicais não pareçam tão radicais nos anos por vir.
A discussão completa na mesa do Congresso GIFE pode ser assistida aqui. Para saber mais sobre a série Next Philanthropy, clique aqui.
Originalmente publicado em: https://www.alliancemagazine.org/blog/a-mirror-to-our-field-my-five-point-plan-for-the-future-of-philanthropy/
[1] Também participaram da conversa o presidente da Candid, Brad Smith, o CEO da East Africa Philanthropy Network, Evans Okinyi, e Naina Batra, CEO e dirigente da Asian Venture Philanthropy Network, que gravou suas respostas a algumas perguntas como forma de driblar as diferenças de fusos horários.