Aldeia Rio Silveira – Foto: Fernanda Biasoli/FunBEA
* Texto de Fernanda Biasoli – jornalista FunBEA
Em uma das trilhas da Aldeia Guarani Mbya Rio Silveiras, no litoral norte de São Paulo, o case para guardar equipamentos fotográficos servia como banco improvisado para Neidinha Suruí, ativista do meio ambiente e dos direitos humanos reconhecida internacionalmente por sua luta em defesa dos povos originários e comunidades tradicionais, dar o seu depoimento sobre o território que estava conhecendo. “Nós estamos conectados no planeta. Não há uma desconexão entre a Amazônia e a Mata Atlântica, o Pantanal, o Pampa, o Cerrado e a Caatinga. Não há”, enfatizava.
Nascida no Acre e criada em Rondônia, Neidinha fez questão de reforçar que não restringe sua luta a lugar nenhum. “Eu sou defensora de todos os territórios, não só da Amazônia”, me corrigiu, quando a defini como uma ativista pelo território amazônico. A fundadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, sediada em Porto Velho, voou mais de três mil quilômetros entre a Amazônia e a região do litoral norte paulista a convite do FunBEA – Fundo Brasileiro de Educação Ambiental, com o objetivo de visitar quatro comunidades tradicionais no bioma da Mata Atlântica, e compartilhar a sua luta com lideranças que também defendem a preservação dos seus territórios e modos de vida.
O roteiro teve início no Quilombo do Sertão de Itamambuca, em Ubatuba, um território de 509 hectares reconhecidos pelo INCRA em janeiro deste ano. No local, todos foram recebidos no Centro Comunitário Luiza Maria Barbosa. No fundo da sala, uma pintura cobria toda a parede, o retrato de Maria Januário, que dá nome ao centro, bisavó de Adriana Leite, liderança comunitária e atual presidente da Associação dos Remanescentes do Quilombo do Sertão de Itamambuca. A figura da matriarca na parede central do centro de convivência coletiva é uma representação da retomada e manutenção da cultura, modos de vida e tradições ancestrais que o Quilombo do Sertão de Itamambuca vive há 25 anos.

“Desde 2000 estamos brigando pelo quilombo. O meu avô confiava em um advogado que tinha aqui e pagava tudo certinho. Quando meu avô faleceu, a família foi buscar o documento da terra e esse documento não existia. A gente foi enganado”, conta Fernando Leite, irmão de Adriana e guia turístico no quilombo. De lá para cá, os moradores se organizaram e hoje estão avançando com as documentações necessárias para a homologação do território. Outro ponto que está sendo trabalhado pela associação é a ocupação de espaços de incidência em políticas públicas, como os conselhos municipais, para garantir os seus direitos à terra e à proteção.
O resgate da cultura quilombola, além de se materializar na pintura de Maria Januário no Centro Comunitário, também se materializa na terra propriamente dita, aquela com t minúsculo. Do outro lado do rio Itamambuca, que atravessa o quilombo, está a roça comunitária onde cultivam banana, mandioca, milho e feijão. Uma churrasqueira improvisada, com algumas bananas grelhadas esquecidas, não deixa dúvidas de que o espaço é utilizado frequentemente pelos moradores. O alimento plantado e preparado ali alimenta mas, mais do que isso, mantém vivas as tradições e afetos dos corpos-territórios que existem no Sertão de Itamambuca.
Territórios fortalecidos buscando soluções locais
Essa luta pela defesa e preservação do território esteve presente nas falas ouvidas durante os três dias de visita de Neidinha Suruí que, além do Sertão de Itamambuca, conheceu também o Quilombo da Caçandoca, a Terra Indígena Ywyty-Guaçu (Aldeia Renascer) e a Aldeia Guarani Mbya Rio Silveiras, todos localizados no litoral norte de São Paulo, território encravado na Mata Atlântica remanescente do estado e que abriga as importantes nascentes de abastecimento da região sudeste brasileira. As quatro comunidades foram selecionadas pela “Chamada Pública FunBEA: pela Justiça e Educação Ambiental e Climática”, que tinha o objetivo de apoiar, de maneira direta (financeira) e indireta (formadora), coletivos, movimentos e organizações socioambientais que atuam em prol da justiça climática na região. O FunBEA acredita que, ao fortalecer esses atores e territórios, estará, também, enfrentando a crise climática a partir do fomento às soluções climáticas locais (SCLs).
According to Common Network, a rede de fundos independentes descentralizadores de recursos da qual o FunBEA faz parte, soluções climáticas locais são “soluções criadas por e para as comunidades, com base nas especificidades dos territórios e grupos envolvidos, voltadas para o fortalecimento da ação coletiva na defesa de direitos, e incluem uma variedade de abordagens”. Essas abordagens dizem respeito a iniciativas de adaptação e mitigação, conservação e restauração, educação e sensibilização, inovação tecnológica e fortalecimento comunitário. “É preciso ter esse entendimento de que quando você apoia o fortalecimento de uma população, seja tradicional, seja periférica, você está fortalecendo a preservação de um local. E você não preserva só a cultura e a identidade, você está preservando a vida e assim lutando contra as emergências climáticas”, explica Neidinha Suruí, que também integra o conselho deliberativo do FunBEA.
“A nossa retomada é um chamado da terra para ajudarmos no seu renascimento”
Territórios de retomada
Seguindo a viagem, fomos em direção à T.I Ywyty-Guaçu (Aldeia Renascer), também localizada na cidade de Ubatuba. Assim como o Quilombo do Sertão de Itamambuca, a aldeia indígena existe a partir de um processo de retomada, manutenção e defesa do seu território há quase trinta anos. A Terra Indígena é um exemplo claro de desenvolvimento e execução das soluções climáticas locais. Ali, são realizados projetos de restauração a partir da produção e plantio de mudas nativas da Mata Atlântica, além do monitoramento da fauna e da flora locais, com projetos pensados a partir da lógica indígena e baseados nos saberes tradicionais e ancestrais. A Aldeia Renascer também é um atestado de como a ocupação e demarcação de territórios tradicionais é fundamental para a proteção ambiental. Mas para entender melhor, precisamos voltar (um pouco) no tempo.
Em 1548, durante viagem ao Brasil, um mercenário alemão foi capturado por indígenas Tupinambás e mantido prisioneiro durante nove meses. Quando finalmente solto, retornou ao seu país de origem e escreveu um relato sobre sua experiência que o deixou mundialmente famoso. Esse alemão se chamava Hans Staden e a parte curiosa é que a sua captura e prisão aconteceram na região do litoral norte de São Paulo. Fazendo um grande salto temporal, na década de 90, o cineasta brasileiro Luiz Alberto Pereira decidiu contar esta história e procurou um local para filmar o seu filme.
O lugar onde hoje é a Aldeia Renascer foi escolhido como locação para o filme e, para as gravações, foram construídas diversas moradias indígenas. Ao final do projeto, indígenas tupi-guarani que habitavam outras regiões do litoral paulista e estavam envolvidos com a produção, perceberam que o local das gravações era uma terra que fora há muito ocupada por seus ancestrais. As evidências dessa ocupação estavam na presença de sambaquis (sítios arqueológicos formados por conchas, ossos de peixes e restos de animais) e de um cemitério indígena. Iniciou-se, então, um processo de retomada e ocupação daquele território que sempre pertenceu aos povos originários.

A região também estava devastada pela mineração e pelo desmatamento, sofrendo com perda de biodiversidade, poluição e assoreamento de rios. Durante os períodos mais críticos da retomada, aconteceram conflitos entre os indígenas e mineradores, que atearam fogo nas moradias construídas para o filme e que serviam efetivamente como casas para a comunidade que se formava ali.
“A nossa retomada é um chamado da terra para ajudarmos no seu renascimento”. É assim que Thiago Awá Tupã Mirim, liderança da T.I Ywyty-Guaçu, define o processo de ocupação, resgate, restauração e preservação que a comunidade indígena realiza no território. Thiago contou a Neidinha que a exploração por parte da mineração deixou o território mais vulnerável aos eventos climáticos extremos e, com isso, a parte central da Aldeia vem sofrendo com enchentes cada vez mais frequentes. Ali, estão localizadas a escola e a Opy (Casa de Reza em tupi-guarani). Segundo Thiago, as enchentes que aconteciam de oito em oito anos, agora acontecem de seis em seis.
Se as consequências de um problema global (a crise climática) são locais, as soluções também devem ser. “A gente sabe de que forma dá para minimizar esse impacto”, afirma o líder indígena. Por isso, desde 1998 o projeto de produção e plantio de mudas nativas da Mata Atlântica vem restaurando o território da Aldeia Renascer, principalmente as partes mais afetadas pela mineração. As mudanças de um território ocupado pelos povos originários são perceptíveis a todos os olhos: no lugar do desmatamento e da poluição mineradora, agora circulam ali animais ameaçados de extinção, aves endêmicas da Mata Atlântica, além da presença de uma flora cada vez mais diversa e fortalecida. “Estamos protegendo para nossa fauna também, o território não é só nosso, dos indígenas, é de todo o ecossistema, é manter toda a biodiversidade”, explica Thiago. Durante conversa com o líder indígena, Neidinha Suruí confessou que sempre teve medo da Amazônia virar uma Mata Atlântica em relação ao desmatamento. Um medo mais do que legítimo. Enquanto a primeira assiste a um ritmo constante de devastação, o segundo bioma já lida com as consequências de ter perdido 87,6% do seu território original. “O juruá (homem branco em tupi-guarani) dividiu os biomas, mas a floresta é uma só”, diz Thiago.
O projeto de restauração da Aldeia Renascer liderado pela comunidade indígena torna o território mais resiliente às enchentes, trabalha a conservação e restauração da fauna e flora local e contribui com o fortalecimento comunitário da aldeia.
Caçandoca: o paraíso quilombola que resiste!

Uma paisagem cada vez mais rara no litoral norte de São Paulo compõe o primeiro quilombo do Brasil a ser reconhecido em terras marítimas. O Quilombo da Caçandoca, em Ubatuba, é um descanso aos olhos fatigados das mansões, resorts It is beach clubs que povoam a região. Algumas poucas barracas de madeira coloridas tingem o horizonte aberto e calmo da praia do quilombo. Na Caçandoca, olhar o mar ainda é um direito garantido a todos que existem ali, fruto da resistência à especulação imobiliária de uma das cidades litorâneas mais famosas de São Paulo. Hoje, além de enfrentar a pressão contra o território, seus moradores também atuam para preservar os saberes que há muito são passados de geração para geração.
“A gente coloca ela no álcool e deixa uma semana mais ou menos, aí começa a usar. Mas se você tiver um corte, não pode usar, em ferida aberta não pode. Só em machucado. Aí faz uma compressa e usa”. As instruções para o uso da erva-baleeira são de Dona Rosa, uma das moradoras mais antigas do Quilombo da Caçandoca. Saberes como esse serão preservados com a Casa de Saúde Diferenciada, estrutura que está sendo construída dentro do quilombo a partir de um apoio do FunBEA. Nela, os conhecimentos da medicina tradicional serão unidos às sabedorias dos anciões e anciãs da Caçandoca, conhecidos como “griôs”.
Se antes os moradores da Caçandoca precisavam caminhar cerca de sete quilômetros até o posto de saúde mais próximo, hoje, são os médicos que vão até o quilombo. Mesmo com a estrutura ainda não finalizada, profissionais de diferentes áreas já estão se fazendo presentes. De acordo com Rafaela Marcolino, presidente da Associação dos Remanescentes da Comunidade do Quilombo da Caçandoca, depois de sete anos a comunidade possui novamente um agente de saúde dentro do território, além de uma fisioterapeuta e um médico que realizam visitas quinzenais.
“A gente não quer um postinho, a gente quer um Centro de Saúde porque é onde a gente pode incluir nossos saberes”, explica Rafaela. A manutenção de conhecimentos ancestrais é uma das maneiras de fortalecer a cultura quilombola e, quando aliada à uma estrutura que se propõe a cuidar da saúde física e espiritual de toda a comunidade, se torna uma ferramenta poderosa de adaptação climática, ou seja, uma solução local. Ao passo em que a comunidade recebe apoio para investir no bem-estar dos seus, ela se prepara para viver em meio aos eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes. Uma comunidade quilombola saudável, é uma comunidade quilombola com disposição para defender o seu território e preservar o horizonte intocado da Caçandoca.

Agrofloresta guarani
Um corpo saudável é também aquele que tem acesso a uma alimentação equilibrada e completa, o que só é possível a partir de uma dieta diversificada. Por isso, na Aldeia Guarani Mbya Rio Silveiras, última parada do roteiro de visitas, Adolfo Timóteo Werá mirim coordena um projeto de agrofloresta dentro do seu território, onde planta banana, jaca, limão, goiaba, mandioca, milho e outros alimentos. A aldeia engloba um território de 8.500 hectares entre as cidades de Bertioga e São Sebastião, onde moram 160 famílias divididas em núcleos familiares. Adolfo é uma liderança em um desses núcleos e foi um dos contemplados pela Chamada Pública FunBEA. A agrofloresta é uma das iniciativas que estão sendo desenvolvidas a partir do apoio recebido.
“Nós pensamos (na agrofloresta) por causa também das mudanças climáticas e do aquecimento global. Nós precisamos de água, fonte de água e a floresta traz chuva. Precisamos do equilíbrio da floresta para manter essa área como garantia de sobrevivência, porque nós somos um povo da floresta, dependemos das árvores e da água, então precisamos ter floresta em pé e árvore em pé”, explica Adolfo.
“Eu achei muito interessante quando o Cacique dizia ‘a gente teve um pequeno apoio do FunBEA e com isso a gente ensinou as crianças e os jovens a fazer artesanato, as mulheres a reproduzir as helicônias, estamos introduzindo a meliponicultura e a gente está reflorestando’. Ele estava descrevendo uma série de coisas e o que ele dizia que era um pequeno aporte, me parecia muito grande”, relata Neidinha. “É como o apoio chega e como ele se transforma em várias coisas que fortalecem a identidade e a cultura, mas principalmente a garantia de ter o território”, finaliza a ativista.
Neidinha, uma mulher que luta ativamente contra madeireiros e grileiros, veio conhecer aqueles que se defendem contra a pressão urbana e especulação imobiliária de uma floresta que virou cidade quase em sua totalidade. “A gente sempre fala na Amazônia que estamos fazendo o fortalecimento da cultura. Aqui eu vi que tem muito uma questão de resgate da cultura, que é diferente do fortalecimento. Nós fomos em aldeias que são de retomada e é retomada de tudo mesmo. Então, é uma luta um pouco diferente da gente porque é uma pressão muito mais do contexto urbano, do que da gente que é uma pressão muito mais de dentro da floresta mesmo, de dizimação da floresta”, explica a ativista.
Mas, se as ameaças são diferentes, as soluções são parecidas. Na Amazônia, terras indígenas demarcadas protegem a floresta e a fauna da destruição pelo desmatamento para pecuária e monocultura. Na Mata Atlântica, estudos apontam que territórios tradicionais demarcados também são essenciais para a conservação da biodiversidade. Segundo pesquisa publicada em 2023 na revista científica PNAS Nexus, a demarcação de Terras Indígenas na Mata Atlântica reduz o desmatamento e aumenta o reflorestamento. De acordo com a pesquisa, houve um acréscimo médio de 0,77% ao ano na cobertura florestal em 129 T.I analisadas que tiveram suas posses formalizadas, em comparação com terras sem posse ou com o processo incompleto. A pesquisa focou em indígenas, mas todas as comunidades tradicionais, como caiçaras, quilombolas e ribeirinhos, são verdadeiros guardiões de seus territórios.
“Durante essa caminhada que eu fiz por aqui, andando nos quilombos e nas terras indígenas, eu vi o efeito que as mudanças climáticas tem nos povos originários e nas populações tradicionais. Mas também vi como eles estão achando saída e como o FunBEA tem atuado para fortalecer a luta dos indígenas e quilombolas nessa questão do clima. Quer ter proteção? Quer ter preservação? Quer ter boa saúde, bem-estar, bem-viver? Demarca território”. Foi assim que Neidinha Suruí encerrou a entrevista.