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Escuta, ousadia e transformação: uma conversa exclusiva com Mônica de Roure

Foto: Divulgação / BrazilFoundation

Com uma trajetória iniciada ainda nos anos 1980, em meio à redemocratização do país, Monica de Roure é uma referência quando o assunto é filantropia estratégica, transformação social e justiça socioambiental. Doutora em Literatura Comparada, mestre em Historia Social da Cultura e atual vice-presidente e diretora de Relações Institucionais da BrazilFoundation, ela traz uma trajetória marcada por escuta, ousadia e compromisso ético com o bem comum. 

Em janeiro de 2025, a BrazilFoundation completou 25 anos, um marco que convida à reflexão sobre os caminhos trilhados e as possibilidades futuras no ecossistema filantrópico. Nesta entrevista exclusiva à Rede Comuá, Monica compartilha os principais legados da fundação, os aprendizados recentes e sua visão sobre uma filantropia mais ousada, descentralizada e estruturada na escuta ativa das organizações em seus territórios.

Agora como conselheira da Rede Comuá, Mônica reforça sua aposta nas organizações de base comunitária como motor da transformação sistêmica. Para ela, a Comuá ocupa um lugar estratégico no fortalecimento de uma filantropia mais colaborativa, ética e conectada com os territórios. É justamente esse compromisso com a base que a motiva a contribuir, trazendo sua experiência para potencializar o impacto social coletivo que a Rede se propõe a construir.

Boa leitura!


Rede ComuáVocê tem mais de duas décadas de atuação no setor social. O que te move e entusiasma neste trabalho?

Mônica de Roure – Comecei a atuar no setor social na segunda metade da década de 1980, em um momento de grande efervescência na história do Brasil, marcado pela transição para a democracia e pela elaboração da nova Constituição. Havia uma esperança coletiva, um forte compromisso com a justiça social, e os movimentos sociais ganhavam força com pautas voltadas à justiça socioambiental. Esse contexto me marcou profundamente e moldou uma geração inteira que passou a atuar nesse campo movida por uma paixão genuína pela transformação social.

O que me inspira desde então — e continua me movendo — é essa crença profunda de que precisamos construir uma sociedade menos desigual: do ponto de vista socioeconômico, de gênero, de raça. Acredito que essa é uma questão ética essencial, que deve orientar tanto o nosso papel como indivíduos quanto a nossa atuação na esfera pública. Precisamos de uma ética pública que se reflita nas atitudes individuais, em como nos relacionamos com o outro e com o coletivo.

Isso se torna ainda mais urgente no mundo de hoje, em que tantas pessoas parecem viver voltadas para si mesmas, com os olhos grudados em telas, alheias ao que acontece ao seu redor. A empatia, a escuta e a consciência do outro são valores indispensáveis para qualquer transformação. E é justamente esse compromisso ético e apaixonado com o bem comum que continua me motivando nesse trabalho.

Rede ComuáComo você vê sua chegada no Conselho da Rede Comuá? O que espera construir coletivamente a partir da sua atuação na Rede?

Mônica de Roure – Agradeço muito pela oportunidade de contribuir de forma mais estratégica com a Rede Comuá. Vejo esse espaço como essencial para a colaboração no setor, formado por organizações genuinamente altruístas, comprometidas com a transformação social a partir da base.

O que mais me inspira na Rede Comuá é o foco nas organizações sociais de base comunitária — aquelas que estão mais próximas das realidades e das demandas das populações a que atendem, e que compreendem profundamente os territórios em que atuam. Acredito que é nesse nível que a mudança social sistêmica realmente começa. Sem entender o tecido social no qual essas organizações operam, não seremos capazes de promover transformações duradouras. A mudança não acontece de cima para baixo, e é justamente por ignorarmos isso que, em tantos aspectos, ainda caminhamos lentamente nos indicadores socioeconômicos, raciais e de gênero no país.

A Rede Comuá cumpre um papel estratégico na filantropia contemporânea e, por isso, me sinto motivada a colaborar. Se puder contribuir com meu conhecimento para o fortalecimento de sua estrutura de operação, acredito que estarei ajudando a potencializar o impacto social sistêmico que tanto buscamos no Brasil.

Rede Comuá – A BrazilFoundation completou 25 anos agora em janeiro. Na sua visão, qual é o maior legado que a fundação deixa até o momento?

Mônica de Roure – Eu dividiria o legado da BrazilFoundation em duas fases. 

No início, a BrazilFoundation se preocupou em interiorizar as suas doações, momento no qual buscamos sair dos grandes eixos de investimento internacional que predominavam no início dos anos 2000. Passamos a apoiar organizações localizadas no interior do Brasil, especialmente aquelas de pequeno porte, onde mesmo um investimento modesto poderia gerar um impacto significativo.

Além disso, fomos uma das primeiras organizações a compreender que, ao apoiar iniciativas fora dos grandes centros e com menor estrutura, era fundamental oferecer também apoio ao fortalecimento institucional. Assim nasceu um dos pilares metodológicos da BrazilFoundation: a promoção contínua de capacity building para as organizações apoiadas. Essa estratégia nos permitiu ver muitas dessas organizações se consolidarem, seguirem ativas até hoje e, inclusive, originarem outras iniciativas complementares. 

A segunda fase do legado iniciou logo após a pandemia, quando a equipe se reuniu para um novo planejamento estratégico e tomou decisões importantes. Embora já praticássemos uma filantropia horizontal, buscamos aprofundá-la por meio de ações concretas: triplicamos o valor médio das doações e estendemos o período de apoio de um para dois anos, com base em uma filantropia centrada na confiança. Isso significou dialogar de forma aberta com as organizações da sociedade civil para entender, com precisão, suas reais necessidades.

Além disso, passamos a estruturar nossa atuação em quatro áreas consideradas fundamentais para o fortalecimento do setor social e o desenvolvimento socioeconômico do país: Equidade de Gênero, Mudanças Climáticas, Empreendedorismo Negro e Educação.

Rede ComuáComo a BrazilFoundation tem integrado as pautas climáticas às agendas de justiça socioambiental?

Mônica de Roure – Na BrazilFoundation, a pauta climática está intrinsecamente ligada à agenda de justiça socioambiental. Isso porque não enxergamos as mudanças climáticas de forma isolada ou restrita a um único bioma. Acreditamos que é fundamental apoiar todos os biomas brasileiros — não apenas a Amazônia.

Os recentes desastres climáticos reforçam essa visão. As enchentes no Rio Grande do Sul, seguidas pelas queimadas no Pantanal, na Mata Atlântica e no Cerrado, demonstram que os impactos climáticos afetam todo o território nacional, inclusive grandes centros urbanos como São Paulo. Isso evidencia a urgência de uma atuação abrangente e integrada.

Temos também o compromisso de apoiar organizações sociais que atuam diretamente na linha de frente dessas emergências ambientais. São essas organizações que enfrentam os efeitos mais severos das mudanças climáticas e que possuem o conhecimento necessário para responder de maneira eficaz às necessidades de suas comunidades.

Ao longo dos 25 anos da BrazilFoundation, nossa experiência com a diversidade e capilaridade do território brasileiro nos proporcionou uma compreensão profunda sobre onde e como investir. Nosso foco está no fortalecimento de comunidades originárias, da agricultura familiar e de todas as que já vivem, cotidianamente, os impactos dos eventos climáticos extremos no Brasil.

Rede Comuá – Em seus textos, você fala sobre a urgência de uma filantropia mais ousada. O que isso significa na prática?

Mônica de Roure – Na minha concepção — e faço questão de dizer que é uma visão pessoal — precisamos assumir mais riscos quando investimos socialmente. Isso significa apoiar organizações ainda não estruturadas, oferecendo as condições necessárias para que se fortaleçam e respondam melhor às demandas das comunidades onde atuam.

Defendo uma filantropia mais dialógica, que parte da escuta ativa: é fundamental sentar com as organizações, entender suas prioridades, como elas se sustentam e quais são suas reais necessidades de infraestrutura operacional. Só assim poderemos contribuir, de fato, para o fortalecimento do setor social e promover mudanças sistêmicas e duradouras.

Estamos diante de um grande desafio: temos deixado populações inteiras à margem, sem acesso a sistemas de apoio e assistência. Precisamos reintegrar essas realidades à sociedade e isso só será possível por meio de um diálogo efetivo com as lideranças que pensam o setor social — construindo, junto com elas, um modelo de investimento proativo.

 É preciso que o investimento social se capilarize e alcance a diversidade de realidades e problemáticas sociais e ambientais do país. Isso é o que entendo como uma filantropia ousada — e sei que não é um caminho simples.

Lembro de uma conversa, há alguns anos, com o presidente da The Boston Foundation. Em tom de provocação, ele me disse algo que nunca esqueci: “Quem realmente quer mudança social sistêmica?” 

Rede ComuáNa sua opinião, como a filantropia mainstream/convencional pode se tornar mais estratégica e menos reativa diante dos desafios sociais?  

Mônica de Roure – A filantropia mainstream tem, sim, potencial para se tornar mais estratégica — e já vemos movimentos nesse sentido em algumas organizações. No entanto, é importante reconhecer que a filantropia mainstream se expressa em diferentes dimensões. No caso das famílias, por exemplo, há aquelas que já vêm adotando abordagens mais estratégicas, enquanto outras ainda mantêm práticas mais assistencialistas. Essas, por sua vez, estão sendo desafiadas pelas novas gerações, que demandam uma atuação social mais transformadora e conectada com os desafios contemporâneos.

Entre as fundações e institutos empresariais, também observamos avanços. Algumas dessas organizações já vêm refletindo sobre como compartilhar os resultados de seus investimentos sociais de forma autônoma, sem que estejam necessariamente vinculados às ações de responsabilidade social corporativa. Essa distinção é fundamental: o investimento social privado deve ter um propósito próprio, voltado ao impacto social, e não estar limitado ao fortalecimento da marca ou ao cumprimento de exigências empresariais.

Por muito tempo no Brasil, houve uma confusão entre investimento social e responsabilidade corporativa, o que restringiu o potencial transformador da filantropia empresarial. Hoje, essa discussão tem evoluído, especialmente diante do risco de que práticas mal alinhadas com os princípios da transformação social sejam percebidas como social washing ou greenwashing — o que pode ser extremamente prejudicial à reputação de marcas e instituições.

Acredito que há espaço e abertura para diálogo. É essencial promover uma maior consonância entre organizações que já atuam diretamente na base e aquelas que ainda não estão habituadas a esse contato. Somente ao apoiar a ponta — as organizações e comunidades que vivem os desafios diariamente — é que a filantropia mainstream poderá realmente fazer a diferença.

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